Assim como muitos vinhos topo de linha, o tinto Almaviva é mais comentado, e desejado, do que consumido. Um rótulo-fetiche, como tantos outros. Um vinho que reproduz há mais de 25 anos o conceito de um château francês em pleno solo chileno, como nenhum outro. O Almaviva, afinal é uma aliança entre a Baron Philippe de Rothschild e a Concha y Toro. À frente da produção, desde 2007, o enólogo e diretor da vinícola Michel Friou.
E foi Michel Friou quem trouxe na mala, antes mesmo do lançamento oficial na Place de Bordeaux, na França, a safra de 2021 que estará no mercado apenas o ano que vem. Os poucos e privilegiados brasileiros que provaram em primeira mão esta belezinha já deram seus pitacos, publicaram seus comentários, teceram elogios na mídia e nas redes sociais, turbinando assim a fama de objeto de desejo deste vinho-ícone. Fato: uma nova safra de Almaviva é sempre notícia e terá repercussão. Se você terá a oportunidade – e condições – de comprar ou provar uma garrafa é outra questão. Mas se está aqui é por que está curioso, certo?
A ‘fórmula” do Almaviva segue, desde a primeira safra de 1996, o corte bordalês. A safra de 2021 traz a seguinte composição: cabernet sauvignon (71%), carménère (22%), cabernet franc (5%) e uma pitada de petit verdot (2%). A variação da porcentagem das uvas, como em todo blend topo de linha, altera todos os anos. Aqui entra a sabedoria do enólogo na busca das melhores uvas do ano para a receita final do vinho. A cabernet sauvignon, no entanto, é sempre soberana, o que não é de se estranhar já que os vinhedos estão localizados no melhor terroir para esta variedade do Chile: em Puente Alto, no Vale do Maipo, ali pertinho da capital Santiago.
E que tal este Almaviva 2021?
Elegância na fruta – madura e na medida -, e nos aromas florais e etéreos. Menos concentracão, mais fineza. Taninos suaves, macio, redondo: uma seda líquida. As notas de groselha, framboesa, frutas vermelhas estão afloradas; os sabores de baunilha e chocolate das barricas são muito ricos – o caldo estagia 20 meses em carvalho novo francês. Longo e intenso exibe todo o potencial de uma excepcional safra, mesmo recém-nascida. É um vinho de guarda? Sim. Mas desarrolhando agora, hábito comum à maioria dos compradores, como admite o próprio Friou, o prazer será imenso. Está aí a marca de um bom enólogo: elaborar um vinhaço para tomar já no seu nascedouro e ao mesmo tempo com um potencial de guarda que pode torná-lo mais incrível ainda. Afinal, até pelo preço de um Almaviva no Brasil (algo em torno de R$ 3.000,00, com variações de safras&lojas), vale apelar para o latim: carpe diem (aproveite o momento!). Abra e beba sem culpa! Quem sabe o dia de amanhã?
Junto com a vedete da casa, Friou incluiu em babagem a nova safra do Epu 2020, o segundo vinho da vinícola, que facilmente ocupa o lugar de muito primeiro vinho de outras produtoras chilenas e de outros países. Também um assemblage bordalês, cabernet sauvignon (81%), carménère (12%), merlot (5%) e petit verdot (2%) e com menor tempo em barricas (12 meses), o Epu é a tradução do cabernet sauvignon de Puente Alto. A uva mais conhecida entre as tintas é predominante, e por um valor bem menor (em torno de 800 reais) provoca uma satisfação imediata. Antes que os advogados do povo venham manifestar o óbvio aqui, afinal 800 reais é um valor menor que do Almaviva, mas ainda assim muito alto, vale comentar que quando o tema é um vinho de topo de gama o preço passa longe da pauta. A isso se dá o nome de valor de mercado.
Michel Friou, o enólogo e o diretor
Michel Friou, assim como a grande maioria dos enólogos dos grandes vinhos que tive oportunidade de conhecer e conversar, é um profissional acessível, generoso, rigoroso no seu trabalho e sem qualquer afetação. Tem um tom de voz baixo, que exige atenção total do interlocutor, mas opiniões firmes. Prefere ouvir, em vez de falar demais sobre seus vinhos. Eles falam por si. Quando provocado a apontar qual a melhor safra do Almaviva, responde como um diretor: “A última, sempre”. Quando questionado sobre o trabalho no campo e na adega, argumenta como um enólogo. Para Frou toda safra é resultado de um esforço contínuo, a fim de extrair das uvas disponíveis sempre o melhor vinho, que seja a tradução daquele lugar e que mantenha o estilo que conquistou clientes e admiradores em todo o mundo. Ou seja, mesmo com a produção praticamente vendida antes do lançamento, trabalha duro na elaboração e na divulgação de seus vinhos. E o Brasil merece sempre um espaço em sua agenda.
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O enólogo teve sua formação nas regiões de Languedoc, Loire, na França; passagens por Cape Mentelle (Austrália), pelo mítico Chateau Margoux (Bordeaux) e ganhou projeção na elaboração do Clos Apalta, pela Casa La Postolle, junto ao consultor-estrela Michel Rolland. Friou chegou ao Almaviva em junho de 2007. Ou seja, a grande maioria das safras do vinho tem sua assinatura.
Almaviva e eu: algumas experiências
Do inconfundível rótulo, que permanece o mesmo – o fundo branco, aqueles três logotipos estilizados que simbolizam a visão da terra e do cosmos e o nome do vinho numa tipologia cursiva –, este palpiteiro e colunista já teve o privilégio de provar dez safras. Sempre na companhia do enólogo. A generosidade de Michel Friou que destaquei nos parágrafos acima não é uma figura de expressão. Ela se revelou, por exemplo, em minha visita à vinícola em 2009 após uma grande prova de seus rótulos em São Paulo. Na ocasião foram apresentadas as safras 1998, 2001, 2002, 2004 e 2005. Além de me receber pessoalmente, e fazer um tour pela adega, fez questão de abrir três safras que não havia provado: 1999, 2003 e 2006.
Nesta sua mais recente aparição na cidade, trouxe junto com o pré-lançamento da safra de 2021 os rótulos de 2019 e 2010 para efeito de comparação. E para aqueles fundamentalistas que torceram o nariz para minha recomendação de abrir logo a safra que virá aí, reconheço o bem que os anos em garrafa podem fazer a um Almaviva. Minha preferência pessoal, a propósito, é pela guarda. Mas lembrando Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas: “Pão ou pães é uma questão de opiniães”, né não? A safra de 2010 é prova viva e a alma (eita!) desse maturação, da dilatação do tempo. Estava num ponto de evolução ótimo, ainda muito longo, com fruta presente e aqueles aromas terciários que só tempo em garrafa traz. A mesma recordação sensorial de evolução com potência e elegância que guardo das safras de 1998 e 1999, de anos atrás.
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Almaviva é um personagem da literatura clássica francesa, “O Conde de Almaviva”, o herói das bodas de Fígaro, transformado em ópera por Mozart em 1786. Almaviva, para muitos conhecedores e admiradores de Baco, é um vinho em estado de arte. A literatura, a música e o vinho têm aqui uma feliz simbiose. O maestro desta ópera líquida é o francês, já quase chileno, Michel Friou. O mundo do vinho aplaude de pé sua batuta.
Um vinho incrível!