Mauro von Siebenthal (pronuncia-se “Fon Zibental”) é um homem do mundo. Advogado suíço, de família de origem italiana, e experiência profissional global, realizou seu projeto de vida produzindo vinhos de personalidade e qualidade no Chile. Mauro é um pequeno grande produtor, pequeno por que adota o conceito de Vinícola Boutique, e grande na ambição de produzir vinhos de reconhecimento internacional e com “alma” – mais precisamente em Panquehue, no Vale de Aconcágua, a 100 quilômetros de Santiago
A Von Siebenthal é parte integrante de um dos grupos mais inovadores e instigantes do Chile, o Movi, Movimento dos Vinhateiros Independentes, que reúne produtores de pequeno e médio porte. Independente, mas nada ingênuo. Não desdenha, nem esconde, por exemplo que um de seus rótulos premium, o Tatay 2007, um carmenère de boa estirpe, levou 97 pontos na lista da Wine Advocate, de Robert Parker. Um feito só igualado duas outras vezes por um vinho chileno: as duas pelo Terrunyo Carmin de Peumo, também da uva carmenère, das safras 2003 e 2005, produzidos pela Concha y Toro.
À primeira vista Mauro von Siebenthal lembra um pouco aquele colega nerd da escola, ou um estereótipo de uma personagem suíço: um pouco acima do peso, pele clara, com as bochechas rosadas, um par de óculos grandes que lhe toma o rosto arredondado e diminuem os olhos e uma calvície que alonga a testa. Logo no primeiro contato, porém, o lado italiano expresso no nome Mauro se impõe. Dono de uma personalidade forte, com opiniões firmes sobre vinhos e críticos, tem um discurso afinado com boas frases de efeito, metáforas incomuns na descrição dos seus vinhos e ótimo senso de humor. Também revela-se um extraordinário anfitrião, um cozinheiro de mão cheia e a melhor propaganda de seus rótulos.
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Mas como ele veio parar neste pedaço do mundo, trocando a toga pelas botas do campo? “Desde os 16 anos sou apaixonado por vinho”, ele dá a dica. A bem–sucedida carreira de advocacia lhe deu eira e beira, e a oportunidade de provar os melhores tintos, brancos e espumantes da Europa e do mundo, formando sua palheta de sabores e aromas. Mauro alimentava um sonho de ter um vinhedo para chamar de seu e já tinha idealizado seu objetivo: elaborar “vinhos com identidade”. Em 1998 um pintor amigo organizou uma exposição no Chile que ele veio visitar. “Tudo que eu havia idealizado para um excelente vinhedo estava concentrado aqui”, conta se referindo à região de Panquehue, no Vale do Aconcágua, onde a Viña Errazuriz também tem seus vinhedos. “Decidi em 5 minutos”, recorda. A região foi a primeira produtora de vinhos no período colonial do Chile, mas naquele momento o terreno era selvagem, não tinha nada. “Começamos a plantar o vinhedo em 1998”.
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“O terreno escolhe você, não é você quem escolhe o terreno. O lugar tem de te eleger”, teoriza, em um estilo limítrofe à autoajuda. Os lugar é mesmo de tirar o fôlego. Mauro costuma levar seus convidados a uma parte mais alta do vinhedo onde pode-se mirar toda a propriedade, as filas de parreiras criando desenhos e a Cordilheira do Andes ao fundo. “Se você escuta a natureza, ela diz alô, alô”, sustenta Mauro numa pegada prosopopeica. São dois vinhedos nas montanhas e outros dois no plano, como solos graníticos (para cabernet franc, merlot, carmenère) e aluvial (para cabernet sauvignon, petit verdot e carmenère). “Em 1998, comecei a comprar essas terras, com ajuda de amigos investidores, até chegar a 52 hectares.” A adega, de estilo arquitetônico colonial chileno, não aposta na linha de impacto visual. É eficiente e dotada de tecnologia necessária, e conta uma estrutura adequada para receber pequenos grupos. Mauro se orgulha de manter um mesmo time de onze leais funcionários desde o início, incluindo seu braço-direito Darwin Oyarce, que nos acompanhou na prova de vinhos ainda em barrica, e do enólogo Stefano Gandolini. Em 2003 já estava produzindo os primeiros tintos “já era um Tatay” e seguiu ampliando sua linha de forma controlada (são sete rótulos). Em 2009 mudou-se em definitivo para o Chile e hoje vive na vinícola, junto com sua mulher, Soledad La Torre. Ao contrário do que possa parecer não é um empreendimento para aventureiros, mas para quem tem crédito no banco. Mauro Von Siebenthal lembra que foram 12 anos no vermelho, perdendo dinheiro (mas talvez ganhando em felicidade, como diria com certeza, se é que não disse).
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Mauro nos conta sua história na mesa de sua sala de almoço, onde será servido uma refeição preparada pelo próprio, na casa que construiu dentro da vinícola. Estávamos eu, Mauro, sua mulher Soledad, Susana Gonzales, a representante de uma empresa chilena de promoção de vinhos, e o escritor de vinhos do Paladar, da revista Prazeres da Mesa, Marcel Miwa, um dos melhores críticos do momento e um degustador de primeira. Mauro me pergunta se conheço os vinhos. Digo que não. Perplexo ele me questiona: “Mas em que mundo você vive?”, achando que era obrigatório alguém como eu ter um conhecimento mínimo de seus rótulos. Sorri sem graça (na realidade eu já havia provado o Cabrantes e mais tarde mostrei ao Mauro o post neste Blog do Vinho, como foto sua e tudo. Vergonha dupla, pelo esquecimento e por não ter feito a lição de casa). Mauro serve a primeira amostra, uma novidade. Um vinho branco de um produtor reconhecido pelos caldos tintos. Trata-se do Rio Mistico, um viognier impactante e encantador. Diferente da maioria que já provei. Cremoso, potente, untuoso e amanteigado, tem um floral delicado e uma personalidade própria. “Uso muito oxigênio na hora de vinificar”, explica. Ele diz que será sua única incursão no mundo dos brancos. Estimulo a continuar, pois de fato fiquei impressionado. Acho que consigo recuperar um pouco a moral com ele.
Começamos então uma sequência de tintos (os vinhos não são filtrados): Montelig 2009 (R$ 343,00*), cabernet sauvignon (40%) carmenère (30%) e petit verdot (30%). O vinho passa 24 meses em barricas francesas e 3 a 4 anos na garrafa até ser desarrolhado e entregar uma bebida de taninos muito aveludados, bom corpo, boca envolvente, boa acidez. Tem um primeiro ataque de pimenta branca e em seguida chegam as frutas negras a cereja. Para comparar, abre uma outra garrafa de Montelig, agora da safra de 2006, três anos mais velho. “Tem mais coisas aqui”, analisa enquanto gira a taça. De fato, mais fruta madura, mais notas de couro, boa evolução na garrafa.
Aponto para uma taça enorme que ele guarda dentro de uma prateleira e o assunto passa a girar em torno dos terremotos e de como perderam copos e vasos durante os tremores, além de vinho na adega, claro. Desafio ele a produzir uma foto com a megataça recomendando beber “uma taça de Von Siebenthal por dia”. Ele prontamente pede para Soledad tirá-la do armário, faz graça e posa para foto. Chega a vez então do aclamado Tatay de Cristóbal da safra 2010 (R$ 1024,00!!!), 90% carmenère e 10% petit verdot. “Nunca pensei em fazer um carmenère usual”, comenta enquanto gira a taça. Complexo. Muito macio, persistência incrível. Aromas de bosque e frutas negras. O final de boca chama a atenção, muito longo, com uma percepção em boca das frutas negras presentes no nariz e bala de café que prolonga no retrogosto (ô palavrinha que não ajuda…). Deve se agigantar com mais paciência e tempo na garrafa. “Grandes vinhos têm de ser profundos e persistentes”, teoriza Mauro. Mais tarde provamos o Tatay 2012, que ficou 26 meses em barrica e só terá suas 3.800 garrafas lançadas em 2018. Já tinha uma classe e persistência marcantes, com muitos aromas de fruta negras. “A petit verdot dá mais tempo e punch ao vinho”, explica.
Terminada a refeição vamos para a prova na adega: começamos pelo Carabantes Syrah 2013 (R$ 161,00). O syrah não navega sozinho, mas é protagonista (syrah 85%, cabernet. sauvignon 10% e petit verdot 5%). Passa 14 meses em carvalho francês novo. Tem um belo nariz, especiarias delicadas e não exibidas, ervas finas, boca envolvente, doçura final e muita fruta vermelha como framboesa. Sobre a safra 2016, ele vislumbra sua beleza: “Será uma bailarina turca oriental”. Em seguida provamos o Carmenère Gran Reserva (R$ 124,00) – carmenère 85% e cabernet sauvignon 15%, com 10 meses em carvalho americano. Fruta bem desenhada, persistente, boa acidez e já “bebível” para um vinho que será lançado em 2016. Provamos ainda alguns varietais vinificados e amadurecidos em separados que ainda repousam em barricas e farão parte de outros vinhos, como o Parcela #7 (R$ 124,00) – um corte bordalês com 40% de cabernet sauvignon, 35% de merlot, 10% de petit verdot e 15% de cabernet franc) do primeiro vinhedo cultivado na Von Siebenthal. “O Blend perfeito não existe, é uma inspiração”, conta Mauro em um vídeo na sua página no Facebook reproduzido abaixo. “Neste nível de vinho fazer escolhas das uvas é uma questão intelectual”
Para o final ficam as impressões do Toknar (R$ 410,00), um surpreendente 100% petit verdot. Como diz Mauro, “só se memorizam vinhos extraordinários”. Este grudou na memória. Os 26 meses de barrica e dois de garrafa aportaram um baita aroma (frutas negras, café, eucalipto), um toque de grafite, potente, grande presença em boca, uma cereja inunda no paladar, mineral, acidez marcante, muita expressão da petit verdot que raramente é protagonista e aqui atua num monólogo magnífico. Na minha modesta opinião – já disse mais de uma vez aqui que sou um degustador mais intuitivo e menos técnico – foi o meu tinto inesquecível do dia. “Os vinhos não são iguais todos os anos – são similares, mas não iguais. Usamos as mesmas uvas, dos mesmos vinhedos, mas a natureza muda a cor a cada ano”, compara Mauro Von Siebenthal.
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Depois de alguns goles, Mauro soltou mais sua verve: soltava fogo pelas ventas toda vez que mencionava o Guia Descorchados e seu autor, o crítico Patricio Tapias. Acusava-o de não ter critério, de não entender a qualidade dos rótulos Von Siebenthal e outros ressentimentos de quem não foi bem avaliado no ranking elaborado todos os anos pelo guia (recente reportagem da revista Decanter, com dicas de Tapias com os melhores cabernet sauvignon chilenos, também passa ao largo dos rótulos de Von Siebenthal). Curiosamente foi outro crítico, muito mais enxovalhado pelos produtores e outros especialistas, Robert Parker, que catapultou os tintos Von Siebenthal entre os vinhos de qualidade e exceção do Chile. “Em 1997 tivemos quatro vinhos acima de 90 pontos”, conta desenhando um sorriso no rosto e arregalando os olhos. Além dos 97 pontos do Tatay, receberam boas notas o Toknar (94), Montelig (92) e o Cabrantes (91). São vinhos boutique, de alta gama, e cobram seu preço. Segundo o site de cotação de vinhos Wine Searcher o Tatay está entre os três vinhos mais caros do Chile e com os preços subindo nos últimos três anos. Mais uma vez Mauro Von Siebenthal define a situação: “Eu prefiro uma Ferrari a um Fiat 500”.
Assista ao vídeo onde Mauro mostra sua propriedade e conta um pouco de sua história (em inglês)
Neste outro vídeo, além de Mauro, o enólogo Stefano Gandolini fala um pouco sobre o terroir e os vinhos (em espanhol)
* Os valores dos vinhos no Brasil foram pesquisados em fevereiro de 2015, no site de vendas online Fine Wines
Publicado originalmente em fevereiro de 2015
Caro Roberto,
Nunca apreciei um Tatay, ou mesmo um Toknar. No entanto, um Montelig 2005 que bebi tempos atrás estava excelente (http://vinhobao.blogspot.com.br/2011/12/montelig-2005-que-vinho-delicioso-de.html)! Briga fácil com outros badalados chilenos, e eu achei melhor. E no Chile, foi comprado por cerca de 50 dólares, enquanto seus compatriotas no mesmo nível estão lá a preços impagáveis.
Abraços,
Flavio
Oi Flavio
Como acho que descrevi no texto, os vinhos são surpreendentes e têm identidade e muito sabor. O Montelig é ótimo, mas como tive a oportunidade de provar o Toknar depois… eu acho que Mauro von Seibenthal de fato faz algo muito, mas muito acima do nível. A propósito, ótimo o nome do seu blog, “Vinho Bão”.
Obrigado pela sua leitura e seus comentários
abraços
Beto
Estive em Santiago em novembro passado, ja conhecia o Vinho Parcela 7,que inclusive bebi uma garrafa ontem,e quis conhecer pessoalmente a Von Siebenthal, tive o prazer de visitar a vinicola que foi apresentada pelo proprio Sr. Mauro, realmente uma pessoa extremamente simpatica e atenciosa, acabei comprando varios vinhos vinhos que ja provei, e são divinos, inclusive o Rio Mistico, que não havia sido lançado no mercado, comprei até um Tatay que la custou 200 dolares, mas ainda não abri, mas tenho certeza que é maravilhoso
Caro Luis Henrique
Espero que aproveite muito o seu Tatay quando for abrir. E de fato, o Mauro é um personagem e tanto. Foi isso que tentei transmitir no post
Obrigado por sua participação e pela leitura
Abraços
Beto Gerosa