Pablo Picasso dizia que precisou de uma vida inteira para aprender a desenhar como uma criança. Steve Jobs, fundador da Apple, considerava “o simples mais difícil do que o complexo.” O que estes dois homens que transformaram o mundo em que vivemos e a maneira como o interpretamos deixam como legado é o conceito de que a busca pelo simples passa pelo aprendizado, e superação, do complexo. Uma dica que vale para o vinho também.
O vinho, teoricamente, não deveria ser complicado sob o ponto de vista do consumidor. Basta ser uma bebida alcóolica que agrade, dê prazer e melhore o momento (uma refeição, uma celebração, um bate-papo com amigos, uma noite romântica, a leitura de um livro). Mas não é bem assim que acontece. O vinho se tornou um assunto de especialistas. O que estabeleceu uma espécie de linha imaginária que divide as pessoas em dois tipos: aqueles que “entendem” de vinho e os que “não entendem”. Mas talvez o mundo fosse mais feliz (o menos complicado) se existisse apenas uma categoria de pessoas: aqueles que gostam de vinho.
Este é tipo de consumidor que começa a habitar os corações e mentes de uma geração de enólogos que, passada a onda dos caldos potentes, de grande extração e sem defeitos, busca cada vez mais uma fórmula que parece óbvia, mas na verdade é trabalhosa e exige foco: a simplicidade no vinho. E o que é este produto? Um vinho fiel a suas origens, fácil de beber, pouco alcóolico, com a fruta em primeiro plano, que vai bem com a comida e tem o prazer do consumo em primeiro plano. Sem desmerecer os vinhos mais sofisticados e de maior complexidade (eu adoro, ok?) é preciso haver um espaço também para o hedonismo sem manual, o beber descontraído.
Aqui se introduz o enólogo David Marcel, um francês da região basca francesa de Iparalde, que desde 2006 mora no Chile, e o seu vinho Pipeño. O Pipeño é um vinho tradicional feito de uvas julgadas até então menos “nobres”, em especial a país, variedade plantada pelos jesuítas na região do Maule desde o século XVI, fermentado em grandes pipas (toneis de madeira), vendido a granel ou em garrafões para consumo dos trabalhadores. “É um vinho que é um patrimônio, feito há muitos anos no Chile”, defende. “Resgatar esta história é muito importante.” Marcel é uma espécie de embaixador do estilo Pipeño, talvez uma das melhores traduções do vinho descomplicado, fácil de beber, e de origem produzido no Chile.
David Marcel, casado com a também enóloga e sócia Loreto Garau, é um homem baixa estatura, rosto redondo, barba cerrada, espanhol fluente, olhos azuis expressivos e opiniões firmes. Em sua primeira passagem pelo Chile foi enólogo da La Postolle, e teve sua experiência com as uvas internacionais mais associados ao vinho chileno de exportação. Ao regressar para França, trabalhou em vinhedos no sul do país e uma nova perspectiva profissional começou a tomar forma: “Este período pela região nos marcou pela diversidade dos vinhos, não necessariamente os mais caros, mas os mais diferentes”. De volta ao Chile, a convivência com pequenos produtores do Maule e sua maneira de vinificação, realizada de maneira tradicional com fermentação em grandes lagares e sem maceração tradicional, apontou outro caminho. “Deparamos com este terroir do Valle de Loncomilla, na região do Maule, e as uvas país e carignan e acreditamos que era possível fazer vinhos com identidade única”, relembra. Em 2012, o chefe da bodega onde Marcel vinifica os vinhos trouxe para provar um tinto que ele fazia para os trabalhadores e que era servido nas festas locais. Falou que era um Pipeño, feito com uva país, das parreiras mais antigas da propriedade, com idade entre 80 e 150 anos. “No ano seguinte decidi vinificar a partir desta uva e mesclei com um pouco de carignan. Assim nasceu nosso Pipeño Aupa”
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A safra de 2013 mereceu 92 pontos no Guia Descorchados e a indicação de vinho inovador do ano. A uva país predomina (70%), mas uma pequena quantidade de carignan (30%) faz parte da receita. Aupa é uma saudação que significa “Viva! Salve!” em basco. O rótulo de linhas simples é também fácil de ser lembrado. “Basta estar escrito Pipeño e a palavra já diz tudo”, explica. Tudo bem, pode até dizer tudo para um chileno, mas para um consumidor brasileiro ajuda uma introdução: “Pipeño é um vinho feito em pipas e do ano, para ser bebido logo”, detalha. Um carimbo imitando um selo de cera escancara o baixo teor alcóolico: 12,5%, um dos grandes méritos do Aupa.
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O Aupa é produzido em três versões, na garrafa tradicional de 750 ml, em um garrafão de 1,5 litro, que traduz com mais fidelidade sua origem, e numa simpática garrafinha de 330 ml, que lembra um casco de cerveja, incluindo a tampa de metal. A garrafinha foi para atender uma amiga que queria um vinho fácil de carregar, de levar para fora e que pudesse beber inteiro, em “porção individual”. Não é má ideia para se atingir um consumidor jovem, descontraído e avesso a firulas. Pra beber no gargalo.
Mas o que se deve esperar do Pipeño Aupa? Aquilo que ele se propõe: limpo na boca, bem frutado e fresco, sem aquela potência dos tintos caudalosos, com baixo teor alcoólico, cumprindo a proposta-conceito: fácil e gostoso de beber, sem maiores complexidades, mas também gastronômico e de identidade própria.
David Marcel também produz outro tinto, junto com a mulher Loreto, o Maitia, que em basco significa “minha bem amada”. Trata-se de “um vinho de cozinheiro”, como ele define, já que é uma mescla de 60% carignan, 30% cabernet franc e 10 pais, mistura definida pelo enólogo e sua mulher a cada ano. A carignan desta região não tem aquela característica mais verde, mas sim aporta mais fruta, o que contribui para o resultado final do vinho. A maceração carbônica (as frutas não são esmagadas, a transformação do açúcar em álcool se dá dentro de cada fruta) que ele aplica tem um objetivo claro: evitar certas coisas como taninos exibidos ou extração excessiva, e não necessariamente está associado a uma busca por aromas de frutas encontradas em vinhos como o francês Beaujolais, que adota o mesmo tipo de vinificação. “Nossa produção é limitada: 30.000 garrafas. Mas há outros produtores seguindo este mesmo caminho, preocupados em resgatar a diversidade e a cultura vitivinícola do Chile”, acrescenta.
É o caso de Manuel Moraga Gutiérrez, de Viña Cacique Maravilla, que brilha no guia Descorchados 2015, editado aqui no Brasil pela Editora Inner, e traz como novidade a indicação de espumantes brasileiros na versão nacional. Cacique Maravilha, que tem um nome mais próximo daquelas bebidas de procedência duvidosa, também trabalha com a recuperação da imagem do Pipeño e da uva país. Mas fica aqui só o registro, pois não provei o vinho e não tenho como emitir uma opinião.
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Outro enólogo e pequeno produtor faz parte desta turma, e que tive o prazer de provar seu vinho foi Bernardo Troncoso. Bernardo trabalha na Viña Montes e mantém uma produção artesanal de um tinto autoral que lembra muito a filosofia da Viña Maitia. Trata-se do Trifulca 2014, 100% da uva cinsault, da região conhecida como Secano Interior, também de videiras mais antigas, estas de 79 anos. Artesanal mesmo, são produzidas apenas 1500 garrafas. A coloração é um tanto turva, com uma expressão forte de fruta fresca, uma pequena agulha no meio da língua indicando ainda resquícios de fermentação na garrafa, taninos bem doces e baixo grau alcóolico. No contra-rótulo a recomendação de guarda: “No lo guarde, bébalo!”
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Mas estes vinhos de autores são naturais, orgânicos, certificados? David Marcel contrai o semblante. Para ele isso não tem a menor importância. Os vinhos têm um mínimo de sulforoso, as parreiras são tratadas sem agrotóxicos, mas ele se nega a certificar vinhedos ou alardear métodos: “Não sou um método de produção”, explica. Os vinhos destes destemidos enólogos que buscam a pureza perdida trazem um frescor ao mundo de baco, introduzem questões fundamentais de missão e valores e, principalmente, recuperam a tradição dos antepassados. Não negam as inovações enológicas muitos menos pregam o abandono das práticas de higiene adotadas atualmente nas cantinas ou dos estudos do clima e do solo mais adequadas para cada tipo de uva, mas buscam manter com esta filosofia a expressão de origem de um produto.
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E antes de colocar o ponto final, um questão se impõe. O leitor é apresentado ao Pipeño Aupa e os vinhos da Viña Maitia. Onde encontrá-los? Os negócios para importação no Brasil estão em fase avançada de negociação, mas ainda não existe um distribuidor. Mas devem pintar por aí. Se for viajar para o Chile, os vinhos podem ser encontrados em Santiago na loja Mundo del Vino, nos restaurantes Borago, Ambrosia, 99, no hotel Hyatt e pelo endereço eletrônico da distribuidora especializada em vinhos de autores Petits Plaisirs, não por acaso um negócio tocado por Loreto
Excelente matéria! Dentre tantos outros, provei o Cacique Maravilla no excelente restaurante Bocanariz em Santiago, no carnaval deste ano. Sinceramente, não gostei nem um pouco, rs. No meu paladar, pareceu ser um vinho com defeito, “passado”. Mas, como bem nos explicou o também excelente somellier da casa, o brasileiro barriga-verde Kelvin, esse vinho é um caso de “ame-o ou odeie-o”, então pode ser que tenha quem goste dessa pegada mais “natural”. De qualquer forma, vale sempre a experiência, sem preconceitos!
Aliás, quem puder, peça ao Kelvin para ele contar a história da conversa que ele teve com o Manuel Moraga Gutiérrez sobre como ele produzia seus vinhos antigamente… É hilária e inacreditável!