Você deve ter visto, ou lido, a humilhação que seleção do Chile impingiu ao time da Espanha ontem (dia 18), não? Um 2 x 0 que eliminou a seleção campeã da Copa de 2010 no segundo jogo da primeira fase da Copa do Mundo do Brasil. No dia em que o Rei Juan Carlos abdicou do trono, parece que o time espanhol abdicou também das glórias do passado. #NãoVaiTerCopa para a Espanha!
Tá. Mas o que isso tem a ver com uma coluna de vinhos?
Bão, além de ser uma oportunidade de o Blog surfar no tema da copa, traz uma analogia que cabe neste espaço. O embate no campo de futebol pode ser transportado para o terroir dos vinhedos, onde disputam a carménère, a uva símbolo dos vinhedos chilenos, e a tempranillo, cultivada amplamente na Espanha.
A tempranillo, em espanhol, significa prematuro, ou seja, uma uva que amadurece antes das outras tintas. Assim, amadurece na primeira fase e não vai até o final, por exemplo….Recebe outros nomes na Espanha: tinto fino, tinta del país, tinta toro e ull de llebre. Em Portugal também atende pelo nome de tinta roriz (no Douro e Dão) e agaronês (no Alentejo). Sinônimo de vinho de qualidade nas regiões de Ribera del Duero e Rioja, e em boa parte da Espanha, produz rótulos estrelados e caros, como aquele reunido pela seleção espanhola: o mítico Vega-Sicilia Único, o Aalto, Marquês de Riscal, Viña Ardanza, Pesquera, Pingus, Bodegas Mauro e a lista segue grande. É uma uva que cresce quando envelhecida em barricas de carvalho americano, sugere tintos com muita frutas maduras, aromas de coco, baunilha, tostados e um baita potencial de envelhecimento – e uma legião de fãs.
Leia também: A Família Vega-Sicilia
A carménère, de origem francesa, mas atualmente pouco cultivada em Bordeaux, seu berço primário, encontrou no solo chileno um terroir para chamar de seu. Seu nome vem da cor da casca, carmim, que colore o vinho com a mesma matiz. A história é conhecida, mas vale contar aqui. A carménère era confundida com a merlot, até quem em 1994 um exame de DNA confirmou a paternidade. Aí o marketing chileno caiu matando e tornou esta como sua uva símbolo, mesmo que raramente produza os melhores caldos do país e também seja apenas a terceira uva mais plantada, atrás da cabernet sauvignon e da merlot. Melhor quando usada em corte com outras uvas, aos poucos vem encontrando seu canto à capela e já exibe alguns varietais excelentes, principalmente aqueles provenientes da região de Peumo, no Vale do Cachapoal. Em uma seleção vitoriosa de varietais (vinhos elaborados como apenas uma única uva) é obrigatório constar: Carmín de Peumo, da Concha y Toro, Terrunyo, da mesma vinícola, Herência, da Santa Carolina e Pehuén, da Santa Rita.
Leia também: Vinhateiros Independentes do Chile: pequenas vinícolas, grandes vinhos
Leia também: Felipe Toso, o “cozinheiro” dos vinhos chilenos Grey, comemora dez safras, explora novos terrenos e lança rótulos
Tempranillo X Carménère
A disputa é muito parecida com a das seleções da Espanha e do Chile. Velho Mundo X Novo Mundo. Tradição X Novo. Campeão X Promessa. Se a tempranillo amadurece mais cedo, como sugere o nome, a carmenénère alcança seus melhores dias mais tarde do que outras tintas, como a merlot, por exemplo, com a qual era confundida (e por isso mesmo anos atrás revelava muitos traços vegetais e verdes). Na taça elas são muito diferentes. O brasileiro se acostumou com o sabor da carménère, é um tinto mais fácil de beber, macio, às vezes com toques de ervas, uma pimenta negra e amoras. A tempranillo da linha mais básica apresenta tintos estruturados, macios e não tão potentes como seus colegas envelhecidos por longo tempo em barricas de carvalho. Depende muito da ocasião, da comida, e da qualidade da vinícola obviamente, para um chileno ser melhor que um espanhol ou vice-versa. Mas ambos merecem estar classificados numa copa de vinhos.
Mas estamos falando de seleções, aqui. Dos melhores do mundo.
E colocar numa disputa no campo dos vinhedos um Vega-Sicilia e um Carmín de Peumo, por exemplo, é algo fora de propósito. Quase uma sacanagem. E claro uma provocação deste colunista. O Vega-Sicilia é uma instituição, um vinho de muita expressão, potência, elegância e longevidade e um copo cheio para aqueles que adoram enfileirar descrições de aromas e sabores percebidos (ou inventados). O Carmín de Peumo é um vinho excelente, merece sempre altas notas dos críticos e já tem uma legião de apreciadores que apostam na evolução de suas garrafas. Mas é outra pegada. Outro estilo de jogo, talvez surpreenda desde o primeiro minuto, pois já entra pronto para jogar. Um Vega-Sicilia está mais para um jogo que precisa de aquecimento e um campeonato mais longo para mostrar seu valor.
Mas há sempre uma chance de uma disputa entre um top tempranillo, estrelado como uma seleção espanhola, ser eliminado por um carménère de alto coturno, mesmo se avaliado pelos paladares mais exigentes. Uma garrafa bouchonée, ou mesmo avinagrada, onde a qualidade se esvai, o aroma desagrada e o sabor decepciona pode derrubar qualquer ícone. Acontece nos melhores rótulos. E, pelo visto, com as melhores seleções. Chi-chi-chi le-le-le!
Leia também: Bouchonée, o vinho Tiririca. Pior que está, fica
Agradeço ao colunista Silvestre Tavares Gonçalves, do Blog Vivendo a Vida, que começou esta provocação num post de seu Facebook, e me inspirou a criar o título e a cometer este texto.