Um pinot noir empedrado, um malbec inquieto, um cinsault tenaz, um carignan vivo, um cabernet sauvignon cada vez mais manso. Eduardo Jordan, enólogo e diretor técnico da Miguel Torres do Chile, desenha o estilo de seus vinhos combinando uvas diversas, agricultura orgânica e resgatando histórias de viticultores. O resultado: vinhos prazerosos.
A Miguel Torres foi a primeira vinícola internacional a investir no Chile, em 1979. O local escolhido foi a região de Curicó, parte central do Chile. Exportava uma experiência de mais de 140 anos produzindo vinhos na Espanha. E introduziu no país tecnologias hoje obrigatórias, como fermentação em tanques de aço inoxidável e envelhecimento em barricas de carvalho francês. A primeira linha produzida por Miguel Torres no Chile foi Santa Digna, depois veio Cordillera de los Andes, Manso de Velasco e seguiu em frente. De lá para cá se espalhou pelo país com vinhedos que vão desde o norte, no Vale de Elqui, até o extremo Sul, no Vale de Itata. São 1030 hectares, 350 de vinhedos próprios. Todo o manejo é orgânico, ou seja, sem uso de pesticidas e produtos químicos.
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Ovelhas
Eduardo Jordan é um profissional experiente. Sua escola foi a De Martino onde militou por 16 anos. Há 4 anos fez as malas literalmente para Curicó, onde vive e trabalha agora. Um encontro de águas que permite Eduardo colocar em prática seus conceitos de cultivo e vinificação alinhados aos objetivos dos proprietários espanhóis. É um estudioso do solo, do clima, da composição das rochas, entusiasta da agricultura regenerativa, do uso de animais – em especial ovelhas – para ajudar na sanidade dos vinhedos.
Trata-se de um exército de 850 animais planejadamente espalhados entre as fileiras das plantas em um tempo calculado para eliminar todo o mato e ervas daninhas que possam afetar as videiras. Parece fácil, largar os bichos esfomeados e aguardar a hora do rango e depois de dias ver tudo limpinho. Nada disso. O planejamento é o pulo do gato, ou da ovelha, no caso. Primeiro é medida a quantidade de ervas e matéria seca disponível – uma ovelha come 1 quilo e meio de matéria seca por dia. Com estes dados calcula-se a superfície e o tempo que as ovelhas serão deixadas nos vinhedos se alimentando. E aí sim os animais são colocados em número e tempo exatos para fazer o serviço. Este ano, por exemplo, Eduardo conta que foram utilizadas 850 ovelhas para 50 hectares.
A agricultura regenerativa é outra prática que começa a ser adotada nos vinhedos da Miguel Torres estimulada pela sede na Espanha. Grosso modo é uma ampliação do manejo orgânico, com métodos que tratam de manter o carbono que é retirado no processo da viticultura e de recuperar o solo com um processo de autofertilização. São processos que no início encarecem a produção, reduzem a produtividade, mas entregam uma fruta mais saudável e um vinho mais puro, além dos óbvios resultados para o meio ambiente. Mas mesmo olhando apenas para o lado comercial da coisa, é a tendência que levou os vinhos orgânicos a um crescimento de 21% de volume de vendas no Chile no último ano.
Rochas
Eduardo tem uma especial fascinação pelo estudo das rochas, dos solos e como esta combinação afeta os vinhedos e aporta sabores, aromas e estrutura ao vinho. Todo enólogo, em especial aqueles que fazem o trabalho no campo, carregam uma espécie de complexo de minhoca, talvez. O entusiasmo que demonstram pelas escavações que produzem no terreno para estudar a composição do solo chega a surpreender os mais incautos. Mas não é maluquice. As calcalicatas, como são chamados estes buracões no meio dos vinhedos, fatiam e expõem as camadas que compõem o terreno. Ali são revelados o tipo de solo – aluvial, arenosos, calcário, argila, vulcânico, pedregoso, cascalho, etc – e em especial a profundidade em que se encontra cada elemento; fundamentais para o estilo da bebida que chega na sua taça. Sendo um pouco mais raso, a calicata permite entender se aquele pedaço de terra tem mais isso, menos aquilo; rocha, areia, pedras, se retem mais ou menos água, qual profundidade as raízes alcançam e por aí vai. É uma espécie de anamnese do solo. O doutor, no caso, é o engenheiro agrônomo ou o enólogo. Se bem compreendido o solo e o que ele pode produzir, o resultado é a excelência engarrafada.
Herois dos vinhedos
Outra preocupação da Miguel Torres, levada a cabo por Eduardo, é o resgate de variedades antigas, de vinhedos seculares e de apoio e parceria a pequenos viticultores de várias regiões do Chile. Eles carregam a história de um lugar, bem como a preservação destes vinhedos, permitindo que plantas muitos antigas, com mais de 100 ou 150 anos, e de variedades até então abandonadas, cheguem até nossos dias. E com elas toda uma prática e um conhecimento desenvolvidos há anos.
A formação do solo, a influência da proximidade do oceano, a altitude, o paredão natural das Cordilheiras, a neblina que protege as plantas de uma luz excessiva pelas manhãs. São todos elementos formadores do estilo dos vinhos. O estudo do solo, os testes e a tecnologia são uma forma de entender qual a uva que melhor se adapta a cada local. Os monges cistercienses tiveram centenas de anos para compreender isso, testando na prática o melhor local, a melhor uva para a Borgonha. Hoje é moleza saber que a região é Disneylândia da pinot noir e da chardonnay. A viticultura moderna tem inúmeras ferramentas para encurtar este tempo. O conhecimento também é bom conselheiro para entender que às vezes melhor solução é adotar práticas do passado, como por exemplo no caso da agricultura regenerativa.
Até mesmo os momentos de stresse climático podem ajudar na melhora da qualidade dos vinhos. O Valle de Limari ficou 3 anos sem chuva, ou quase nada de precipitação. Eduardo conta que o governo chileno teve de tomar uma atitude drástica. Para priorizar o consumo de água da população, proibiu os produtores de irrigar as plantas. Diante de uma espécie de escolha de Sofia das parreiras, foram eliminados os piores vinhedos e foram mantidos apenas aqueles com as melhores uvas. Resultado: os vinhos da região deram um salto de qualidade em 2015.
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E para que serve todo este conhecimento? Do ponto de vista do consumidor, entender a origem, o estilo ou mesmo o que um vinho nos transmite ajuda na escolha. E na formação do gosto. Sendo assim, fica a pergunta. E o que têm a nos contar os vinhos da Miguel Torres do Chile? Aqui um papo rápido com alguns deles provados recentemente.
Cordillera Chardonnay 2020
Uva: 100% chardonnay
Região: Valle del Limari
Importador: Qualimpor
R$ 149,00
Este Chardonnay nos ensina algumas coisas, explica Eduardo. Influência marítima, das conchas e da carmanchaca. Humm? É a tal neblina que cobre pelas manhãs os vinhedos protegendo da luz excessiva e aporta umidade. Quando dispersa, permite a luz do sol alcançar as plantas. As conchas dão origem ao solo calcário, que aporta uma certa untuosidade ao caldo, a proximidade do mar um toque salgado na entrada do vinho em boca. A cremosidade vem de estágios variados de fermentação e envelhecimento em aço inoxidável e barricas de carvalho francês de idades variadas. A fruta é delicada, sem excessos, bem fresco provoca camadas de sensações que começam com a salinidade de início e termina com a cremosidade da Chardonnay.
Cordlillera Carmenère 2020
Uva: 100% carmenère
Região: Peumo, Vale do Cachapoal
Importador: Qualimpor
R$ 159,00
A carmenère é uma uva tipo ame-a ou deixe-a. Os especialistas em geral torcem literalmente o nariz para aromas de pirazina (pimentão, herbáceos) às vezes exagerados. O consumidor adora, entende como uma uva símbolo do Chile. Esta carmenère vem da melhor região para a uva até o momento no Chile, o Peumo. Mas Eduardo Jordan alerta que mesmo nos melhores lugares é preciso ter paciência e aguardar uns 12 anos para os frutos gerarem bons vinhos. Esta foi uma boa safra para a uva e um dos recados que a videira dá ao enólogo para o momento certo de colheita é quando as folhas começam a ficar avermelhadas, mas não totalmente. Significa que não está produzindo mais pirazina. O resultado é um tinto bem escuro, como tem de ser, com um toque mentolado e boa intensidade de fruto e, vejam só, sem a tal da pirazina. Mas é uma carmenère. Ame-a ou deixe-a.
Cordillera Carignan Vigno 2018
Carignan 100%
Região: Vale do Maule
Importador: Qualimpor
R$ 159,00
A carignan é, na minha modesta opinião, uma variedade admirável. Teve seus momentos de baixa no Chile mas a partir de 1995 se iniciou a revalorização da uva. Uma associação de 12 produtores fundada em 2011– são 17 atualmente – zela pela elaboração de vinhos elaborados com a carignan. Os vinhedos precisam ter no mínimo 30 anos, não é permitida a irrigação, o vinho precisa ter no mínimo 65% da variedade e estagiar 2 anos na garrafa antes de ser comercializado. A identificação desta espécie de DOC da carignan é muito fácil. Todos os rótulos que seguem estas regras exibem o nome Vigno. O Vigno da Miguel Torres vem de uma região intermediária do Vale do Maule, nem mais frio nem mais quente e de vinhedos de vinhas velhas e de baixa produção: no máximo dois quilos por planta. O ponto de exato de colheita, ensina Eduardo, é quando a uva está crocante. Como não apresenta uma grande variedade de aromas, se usam mais barricas velhas nos 14 meses de envelhecimento e cubas de inox, o que aporta um agradável tostado que não fica maquiando o vinho nem encobrindo a fruta.
Tenaz 2019
Uva: 100% Cinsault
Região: Vale do Itata
Importador: Qualimpor
R$ 119,00
Este é um vinho com story telling, como diriam os gurus da comunicação. Faz parte de um projeto de valorização dos pequenos produtores chamado de “Heroes del Vino”. O nome Tenaz reflete exatamente a semântica do adjetivo, de alguém que suporta uma grande pressão e não desiste de seus objetivos. Este Tenaz 2019 leva o nome de José Miguel Castillo, um viticultor da cidade de Huaro, no Vale do Itata, que manteve o projeto do avô e de seu pai e continuou produzindo vinhas de cinsault com mais de cem anos. Todo projeto dos heróis do vinho trará estampado o nome de um produtor tenaz, que além da parceria da venda das uvas recebe uma porcentagem da comercialização das garrafas. O vinhedo fica a 22 quilômetros do mar, numa área mais fresca e sem irrigação (secano), o solo de argila capta a água. A opção aqui é de uma cinsault mais fresca. “Se colher duas semanas depois, muda completamente o perfil do vinho”, observa Eduardo. Cerca de 5% das uvas são fermentadas com o engaço, o que confere um pouco mais de rusticidade, refletindo um pouco os moradores da região. No nariz um mentol que o enólogo atribui aos eucaliptos em volta dos vinhedos. Um vinho com história, menos certinho, e por isso mesmo prazeroso.
Los Inquietos 01 2019
Uvas: malbec (maior parte, algo como 80%) e pequenas partes de cabernet sauvignon, cabernet franc, carmenère, gross verdot
Região: Vale do Maule
Importador: Qualimpor
R$ 489,00
Subimos um pouco de nível. Trata-se de um field blend, ou seja, um vinhedo em que as uvas são plantadas misturadas. Aqui domina a malbec acompanhada de um coro de outras tintas que vão aportando estrutura, aromas, frutas etc. Este vinhedo de 1945 era uma joia que Eduardo Jordan conhecia de seus tempos de De Martino e recomendou a compra aos patrões. A fermentação do leveduras nativas agregam uma pureza ao caldo que é bastante aromático, sem ser enjoativo: estão ali as frutas vermelhas e o floral. Na boca é elegante, com uma ótima acidez, um pouco incomum a um malbec e por isso mesmo bastante gastronômico. Um final persistente. Uma ótima surpresa. Um spoiler. Deve vir por aí um Los Inquietos 02, desta vez com a cabernet sauvignon como destaque no abre-alas
Manso de Velasco 2018
Uva: 100% cabernet sauvignon
Região: Vale do Curicó
Importador: Qualimpor
R$ 469,00
É um clássico da Miguel Torres do Chile. Mas um clássico em transformação. Até a a safra de 2013 mantinha um mesmo estilo, do cabernet sauvignon que fez fama e deitou na cama no Chile, mais voltado para a potência. São vinhedos de mais de 100 anos, de 1902, de solos aluviais, formados com sedimentos de rios que ficam próximos. A cabernet sauvignon se dá bem com um riozinho próximo. A partir de 2014 houve um trabalho no campo e na adega no caminho da elegância. As safras de 2015 e 2016 não foram lançadas por conta da chuva e a de 2017, ano muito quente, toda a produção foi enviada para China, país que curte um vinho mais maduro. Esta safra de 2018 retoma um caminho da transformação mantendo aquela cor escura, os aromas clássicos de frutos vermelhos e negros, bons taninos e longo final mas acrescidos de uma elegância na fruta, madeira na medida (49% de segundo uso, 40% de fudres de carvalho alemão) e mais frescor, sem perder a estrutura bem definida que o estilo exige.
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Escaleras de Empedrado 2015
Uva: pinot noir
Região: Vale do Maule
Importador: Qualimpor
R$ 969,00
Por último o vinho mais ícone lançado pela Miguel Torres do Chile. Nas palavras de Eduardo Jordan, “a busca do sublime possível e da descoberta”. Um projeto ambicioso pelos números e desafios. Teve um investimento de 4 milhões de dólares, e nasceu da pesquisa e do conhecimento geológico em uma área costeira do Vale do Maule, próximo à cidade de Empedrado que dá nome ao vinho. O vinhedo em si já foi um desafio: plantado em terreno acidentado, em encostas íngremes (alguém aqui lembrou do Douro ou do Priorato?) repletas de “piedra pizarra” e de clima extremo. Neste momento o lado geólogo do diretor técnico da Miguel Torres aflora com maior ênfase. Para explicar a influência da pedra pizarra – um espécie de pedra laminada – Eduardo recorre a mapas que se iniciam na era da Pangea, quando os continentes não haviam ainda sido separados até a formação das cordilheiras – costeira e dos andes – no Chile.
A pedra pizarra se forma por dois processos de rochas se comprimindo com as movimentações tectônicas e depois criando camadas, fatias de rochas de minerais diversos que se quebram com mais facilidade. Estudos neste local, e neste momento da idade dos vinhedos, revelaram que as rochas muito próximas do solo geram vinhos mais estruturados, mas aquelas que estão no meio do solo resultam em caldos de melhor qualidade, pois as raízes demoram mais tempo para se aprofundar. Videira é uma planta masoquista, quanto mais sofre melhor entrega. A relação da formação rochosa do solo com o vinhedo é um fenômeno, aliás, que Eduardo foi conferir no coração da Borgonha e, voilà, não à toa a pinot noir foi a variedade que melhor se deu em Empedrado: aqui o “sublime e a descoberta” se encontramem. Inebriante nos aromas intensos e elegantes, do tipo que nos obrigam a voltar a enfiar várias vezes o nariz na taça. Remetem às cerejas, o que é uma característica da uva, mas de um perfil mais sutil e delicado. Também trazem aromas de cogumelos, algo terroso. Na boca a fruta, a mineralidade que vem da pedra (ou não; este tema é controverso, leia aqui). O final longo e elegante completam a experiência. Enfim, um vinho ‘Uau!”. Com preço idem. O sublime tem seu custo…
Muito interessante!
Eu experimentei o Tenaz que foi comprado na loja virtual Merci Le Vin e me surpreendi!
Oi Diogo, um vinho bastante curioso, não? E com uma história bem bacana. Legal que vc também curtiu. Obrigado por sua participação. Apareça sempre. Abs