Rafael Tirado (Laberinto – Chile) e Tomás Stahringer (Vinyes Ocults – Argentina) são dois exemplos de enólogos com uma ideia na cabeça e um vinho na mão. Adeptos de vinhedos orgânicos, do uso de leveduras naturais e de uma menor intervenção na adega, engarrafam vinhos que celebram seu terroir e expressam suas ideias e ideais. Vinhos que privilegiam o frescor, a acidez, o equilíbrio, a fruta e o prazer de beber.
Um enólogo e seu labirinto
Rafael Tirado tem uma folha de serviços com mais de trinta anos na enologia chilena. Além de um trabalho de consultor requisitado, cultiva seus próprios vinhedos desde 1993. O local escolhido foi a região sul do Maule, dentro da D.O Colbún (nome do lago em frente ao vinhedo), aos pés da Cordilheira dos Andes. “Desde criança queria fazer vinhos próprios”, comenta Rafael. “Fui então ao sul, próximo à cordilheira. Queria buscar algo diferente. Encontrei este terreno com solo de cinzas vulcânicas e argila com vinhedos voltados para o norte e sul”, complementa. O clima é fresco, sempre com noites frias “toda noite é preciso usar um casaco”. O resultado são vinhos com uma acidez marcante, direta e frescor em boca. Uma característica dos rótulos Laberinto.
Pioneiro nesta região, foi considerado um pouco maluco pelos colegas. Sempre buscando experimentar novas técnicas, plantou os vinhedos em formato de curva, para ampliar a variação de exposição do sol nas plantas. Aqueles mais ao sul, mais frio, plantou as variedades brancas; ao norte, mais quente, as tintas. Um tanto mais radical, desenhou duas parcelas no formato de um labirinto circular. A exposição ao sol neste caso se aplica de maneira randômica: “Aí sim acharam que eu estava mais louco ainda”, comenta Rafael com um sorriso meio tímido. O labirinto no vinhedo é uma réplica do famoso Labirinto da Catedral de Chartres, construído por volta de 1200 na França. Uma mistura de rebeldia, misticismo e marketing se transformou no símbolo que representa e dá nome à vinícola de Rafael Tirado.
De um terreno total de 100 hectares apenas 23 são dedicados às parreiras, maior parte ocupada pela branca sauvignon blanc. O restante do terreno permanece com vegetação nativa, pastos, árvores entre os vinhedos, buscando um equilíbrio necessário com o meio ambiente e proporcionando uma viticultura responável. Laberinto já nasceu orgânico, mas Rafael desdenha as certificações. A maioria dos vinhos usam leveduras naturais conferindo um caráter mais autêntico aos vinhos. A pressa, como se sabe, é inimiga da enologia. Rafael Tirado tem a paciência de um budista. Iniciou o vinhedo em 1993, mas apenas se sentiu confortável para colocar o primeiro rótulo no mercado sete anos depois. O vinho, de verdade, não tem o tempo do Instagram. Muito crítico de seu próprio trabalho, considera seu primeiro vinho mais sério o da safra de 2007. Inicialmente fascinado pela acidez da sauvignon blanc, precisou de algum tempo para alcançar um equilíbrio desejado: “As primeiras safras chegavam a ‘cortar’ a língua”, avalia em retrospectiva.
Irmão gêmeo de outro conhecido enólogo, Henrique Tirado (Don Melchor, Concha y Toro), Rafael não escapa da curiosidade sobre a relação dos dois e da comparação do trabalho que desenvolvem. Como os questionamentos são inevitáveis, Rafael trata de tirar da frente a questão e se adianta aos seus interlocutores. “Tenho um irmão gêmeo que também é enólogo (informando os especialistas desinformados) e degustamos e comentamos vinhos juntos”. E quando provaremos um vinho dos dois irmãos? Alguém provoca. Rafael Tirado sorri.
Após quatro anos sem viajar, Rafael Tirado veio a São Paulo no início de outubro para mostrar alguns de seus vinhos. Eles estão de cara nova, com rótulos redesenhados, e novo importador, a Adega. São três linhas distintas, mas que mantêm um mesmo perfil: Cenizas (remete às cinzas vulcânicas); Arcillas (à argila) e Trumao (uma linha mais premium).
No time dos brancos, o afiado Laberinto Cenizas Sauvignon Blanc 2021, de solo vulcânico, mostra a riqueza mineral e a acidez marcante. A acidez, um dos pontos altos dos vinhos de Rafael Tirado, chega na boca em linha reta, com uma flecha. No final um pequeno toque salgado se faz presente. Com um pouco mais de corpo, o Laberinto Arcillas Riesling 2020 traz uma complexidade maior, uma cremosidade que é resultado da fermentação em concreto e ânfora de argila. Já o Laberinto Trumao Sur Sauvignon Blanc 2019 junta as características das duas linhas anteriores, mantendo o frescor e acidez do Cenizas, a cremosidade do Arcillas, acrescentando uma complexidade e um tanino redondo resultado dos doze meses em contatos com as borras.
Representando os tintos, o Laberinto Cenizas Pinot Noir 2019 é pura fruta fresca e delicadeza de sabores e aromas, longe do toque doce de certos pinot noirs chilenos. Os 12 meses de barricas de 400 litros são usados para afinar taninos sem marcar o caldo. O Laberinto Arcillas País 2020 é uma aposta naquela uva que tem sua história e valor em processo de recuperação pela enologia chilena. A país cada vez menos rústica e mais bem trabalhada, chega mais macia e fresca. Merece ser conhecida. Por fim, um blend, Laberinto Cenizas Mescla Tinta 2017. Equilibrado, com predominância da cabernet franc (60%), merlot (30%) e cabernet sauvignon (10%). Aproveito aqui e repito a definição do blend feita proprietário da PNR Group/Edega, Philippe de Nicolay Rothschild, que importa os vinhos Laberinto: a cabernet sauvignon são os ossos, a estrutura, a cabernet franc os músculos e a merlot a pele do vinho. Parte das uvas são cofermentadas, ou seja, passam pelo processo todas juntas. Rafael Tirado optou por estagiar o vinho por 16 meses em barricas de lenga, uma madeira da Terra do Fogo, de grãos mais finos e que trazem mais elegância. Um tinto equilibrado em seus elementos. Sem filtragem, alia fruta, taninos macios e frescor marca registrada dos vinhos Laberinto.
Laberinto Cenizas Sauvignon Blanc 2021
Uva: sauvignon blanc
País: Chile
Região: Maule, D.O Colbún
Importador: Edega
R$ 240,00
Acidez de uma flecha afiada, direta, vibrante e um toque salgado
Laberinto Arcillas Riesling 2020
Uva: riesling
País: Chile
Região: Maule, D.O Colbún
Importador: Edega
R$ 310,00
Um riesling com mais corpo, cremosidade e complexo em boca
Laberinto Trumao Sur Sauvignon Blanc 2019
Uva: sauvignin blanc
País: Chile
Região: Maule, D.O Colbún
Importador: Edega
R$ 495,00
O encontro da acidez com a complexidade e a profundidade
Laberinto Cenizas Pinot Noir 2019
Uva: pinot noir
País: Chile
Região: Maule, D.O Colbún
Importador: Edega
R$ 260,00
Delicado, sutil, fresco e frutado
Laberinto Arcillas País 2020
Uva: pais
País: Chile
Região: Maule, D.O Colbún
Importador: Edega
R$ 260,00
Um país domado e desafiador
Laberinto Cenizas Mescla Tinta 2017
Uva: cabernet franc (60%), merlot (30%) e cabernet sauvignon (10%).
País: Chile
Região: Maule, D.O Colbún
Importador: Edega
R$ 240,00
Um corte bordalês no ponto de beber
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O vinho da caveira
Tomás Stahringer, um pouco mais novo que Rafael, também teve uma carreira em grandes empresas em seu país, a Argentina: Nieto Senetiner e Trivento. Os vinhedos da Vinyes Ocults estão localizados no Vale do Uco, na margem norte do Rio las Tunas, em Mendoza, Argentina. Os solos são arenosos irrigados com águas de degelo da Cordilheira dos Andes. Outra característica marcante do lugar é a amplitude térmica (diferença de temperatura entre o dia e a noite), que varia entre mínimas de 10 ºC e máximas de 35º. Bom para a sanidade e frescor das uvas.
Tem quem chame projetos como Vinyes Ocults de vinícola butique. Butique, artesanal, como queira denominar, é um espaço de vinho de autor, onde o enólogo domina todo o processo, do vinhedo à enologia. O grande diferencial é a capacidade de o enólogo, com as ferramentas certas, demonstrar na garrafa o potencial daquele lugar e desenhar o vinho que melhor expressa o terroir. Mas para o consumidor qual a importância deste conceito de vinhos que traduzem um lugar, tão caro aos enólogos e especialistas? Tomás Stahringer tem consciência de que para uma grande maioria não é determinante na escolha do vinho. “Se ele gosta, vai comprar. Simples assim”, conclui de forma realista “Mas aquele consumidor que aprecia o vinho, fica curioso, começa a entender a diferença de estilo e busca vinhos assim”, contemporiza.
A vinícola nasceu em 2007, de forma ainda artesanal, num momento de confluência de dois marcos na vida de Tomás, o nascimento de seu filho e a morte de um colega que foi um importante na sua carreira. Voltando de uma viagem ao México, decidiu usar a caveira como marca registrada de seus rótulos pois naquele país a caveira também representa a vida e a proteção contra maus espíritos. Vinyes Ocults (vinhedos ocultos) é um nome de inspiração catalã, onde Tomás passou um período trabalhando.
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Na linha importada pela Boca a Boca aparecem um branco e vários tintos. O Vinyes Ocults Viognier 2020 é um viognier é mais seco, vibrante e fresco, com mais fruta e menos floral que é uma característica do perfil da variedade. Tomás comentou que o tempo que esteve na gigante Trivento foi fundamental para o conhecimento da viognier, que aplicou ao seu rótulo.
Mas as estrelas ocultas são os tintos. Vinyes Ocults Malbec Cot 2020 é elaborado pelo método de maceração carbônica: o processo de fermentação se dá com cachos da malbec inteiros e com os engaços em um ambiente fechado e só depois são esmagados. Um malbec mais leve, tanto na cor como no sabor, com uma pegada refrescante, que mostra uma fruta, quase irreverente. O Vinyes Ocults Blend é um corte da emblemática malbec (60%), aqui envelhecida em barricas de carvalho americano de segundo uso, com as cabernet sauvignon (20%) e cabernet franc (20%), que estagiaram em barricas francesas de primeiro uso. Um corte é uma elaboração do enólogo. Se cruzam na mescla as especiarias da cabernet franc, a espinha dorsal da estrutura da sauvignon e o frutado e aromático da malbec num vinho macio e gostoso de beber. A grande estrela, o Vinyes Ocults Gran Malbec 2018, chega já carregando notas altas no Guia Descorchados e da revista inglesa Decanter (97 pontos, a safra 2015). Uma boa nota acaba influenciando, não adianta querer negar. Já se bebe o caldo com alguma atenção. São apenas 1300 garrafas por ano. E aí junta baixa produção + alta pontuação = maior preço. São 24 meses antes de chegar ao consumidor: 12 meses em barricas e 12 meses na garrafa. O malbec na sua maior expressão de nariz e boca: macio, fruta madura, boa acidez, equilíbrio, sem exageros. Final longo, um afago nas papilas gustativas. A safra medalhada do Gran Malbec 2015 acentua expressão no nariz, com um floral mais presente, e evolução da fruta e na garrafa. É um malbec excepcional, merecedor de toda pontuação recebida. As duas safras, com diferença de apenas três anos, indicam vinhos longevos, com capacidade de crescimento das camadas aromáticas e gustativas.
Vinyes Ocults Viognier
Uva: viognier
País: Argentina
Região: Mendoza, Vale del Uco
Importador: Boca a Boca
R$ 170,00
Aromas florais domados, fresco e boa acidez
Vinyes Ocults Malbec Cot 2020
Uva: malbec (cot é nome original da malbec no sul da França)
País: Argentina
Região: Mendoza, Vale del Uco
Importador: Boca a Boca
R$ 170,00
Irreverente, harmoniza com um bom papo
Vinyes Ocults Blend
Uvas: malbec (60%), cabernet sauvignon (20%), cabernet franc (20%)
País: Argentina
Região: Mendoza, Vale del Uco
Importador: Boca a Boca
R$ 250,00
Um blend equilibrado e gastronômico
Vinyes Ocults Gran Malbec 2018
Uva: malbec
País: Argentina
Região: Mendoza, Vale del Uco
Importador: Boca a Boca
R$ 520,00
Profundo e sedutor no nariz, cheio em boca.
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O labirinto e a caveira
Rafael Tirado e Tomás Stahringer mostram assim o potencial dos vinhos de autor no Chile e na Argentina. Não são os únicos, mas bons exemplos. A Cordilheira dos Andes, de alguma forma, conecta os dois projetos. Não são dois aventureiros, mas experientes enólogos que aplicam, em suas vinícolas, conhecimento, inovação e respeito ao terroir, além de adotar uma viticultura mais natural, com uma preocupação com o meio ambiente e o homem. Afinal, não existe plano B para o planeta Terra.
O labirinto e a caveira carregam muitos significados na mitologia, no misticismo, na fé cristã e no judaísmo. Em comum, representam o desafio de percorrer um caminho, atingir um objetivo desafiador (sem ser devorado pelo Minotauro, de preferência) e o ciclo que envolve a morte e a renovação da vida, que também pode ser associados ao ciclo anual de uma videira. Se topar com um labirinto pela vida, que seja um vinho de Rafael Tirado; diante de uma caveira, prefira um tinto da Vinyes Ocults de Tomás Stahringer.