O trabalho de um jornalista de guerra é o registro possível da história em tempo real. O intervalo entre o fato e sua publicação é mínimo.O tempo é fluido, os fatos efêmeros. O trabalho de um viticultor e enólogo é o oposto disso: o tempo corre mais devagar. O ciclo da videira é longo e marcado pelas estações, o clima tem seus caprichos. A maceração e fermentação das uvas tem seu calendário e por fim a maturação do vinho exige experimentação e paciência.
Leia também: Você conhece vinho argentino? Um passeio pelas regiões vinícolas
Da guerra para a paz. O argentino Gabriel Dvoskin, proprietário da Canopus Vinos, viveu esta metamorfose pessoal. De ex-correspondente em Cabul, nos anos 1990, para proprietário de uma vinícola orgânica e de orientação biodinâmica no Valle do Uco, em Mendoza, na Argentina. O tempo urgente do jornalista se dilatou no lento processo que envolve todas as etapas para produzir um vinho. A saga pessoal de Dvoskin exigiu quase 10 anos de espera. A procura pelo terreno ideal começou em 2008; a plantação dos primeiros vinhedos em 2010 e finalmente o lançamento do primeiro rótulo, em 2017.
- Leia também: Pyros: um malbec que é pau, é pedra
Esta transformação, claro, não foi obra do espírito santo. A decisão de se tornar um produtor de vinho foi entrando em sua vida aos poucos. No seu passado de jornalista internacional viveu alguns anos na França, o que facilita muito a paixão pelo vinho, vamos combinar. Seu caminho de Damasco foi uma colheita de uvas que realizou na Borgonha. Dali em diante acendeu o desejo de ter um vinhedo na Argentina. Mas Dvoskin tinha ideias um pouco distintas do vinho que gostaria de elaborar em sua terra natal. Era um estilo que ele provara na França –orgânicos, biodinâmicos, mais puros. A Argentina nesta época era um tango de uma nota só: vinhos estruturados, potentes, com muita fruta madura. “Ninguém falava deste estilo de vinho na Argentina em 2008”, relembra Dvoskin.
Para alcançar este perfil de vinho, alguns pilares nortearam na busca de seu futuro vinhedo: uma região fria, de solos calcáreos e que traduzisse o lugar. Encontrou seu shangrilá na região de El Cepilo, no Valle do Uco, no sul de Mendoza. Em 10 hectares plantou as variedades tintas malbec (maior parte) e pinot noir. Do universo das brancas há uma experiência com a chenin blanc e a riesling, que ainda não estão no mercado.
O clima, como queria, é frio, mesmo nos anos mais quentes. Os ventos persistentes. Não é à toa o slogan da Conopus: Viños del Frio. A Conopus exibe selo de certificação orgânica e segue preceitos biodinâmicos. O processo de produção é natural, com pouquíssima intervenção no vinhedo, sem correções na adega e nem uso de leveduras de mercado. O vinho é o que a uva é. A parte de envelhecimento é feito em barricas francesas usadas e esferas de cerâmica (não aquele formato de ovo, que virou uma espécie de modinha, mas esféricas mesmo). Esta é a receita que entrega o DNA de seus vinhos. “Vinho tem de ter caráter e tensão”, costuma repetir.
Pintom Nox Pet Nat 2021
Uva: malbec
País: Argentina
Região: Valle de Uco
Importador: Vinoterra
R$: 134,00
Um espumante descontraído, elaborado apenas com a variedade malbec, por um método pouco conhecido fora da turma dos orgânicos, chamado de ancestral, ou pet-net. A fermentação acontece de forma natural – daí o nome – usando apenas o açúcar residual do mosto. Outra diferença: o vinho passa por apenas uma fermentação dividida em duas etapas, fora e dentro da garrafa, para depois ser aprisionado com uma tampa de metal, como as de cerveja. Resultado: um espumante leve, de borbulhas tímidas, pouco alcoólico, fácil de beber. Diferentão na boca, não quer se impor a ninguém, mas chega tranquilo, como um samba de Paulinho da Viola: “Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim”
Pintom Rosado Subversivo Pinot Noir 2020
Uva: pinot noir
País: Argentina
Região: Valle de Uco
Importador: Vinoterra
R$: 175,00
“Subversivo: adjetivo substantivo masculino; que ou aquele que prega ou executa atos visando à transformação ou derrubada da ordem estabelecida; revolucionário”. Esta definição de subversivo encontrada nos dicionários se encaixa bem neste caldo que tem um método todo particular de maceração, funciona como uma espécie de infusão de chá. A primeira parcela das uvas é prensada normalmente, mas a parte final é colocada com as frutas inteiras dentro de um saco de malha e deixadas por alguns meses em tanques de concreto com o resto do mosto prensado anteriormente. Frescor, fruta discreta, um cítrico e até um toque salgado no final. Assim o discurso subversivo deste Pintom Rosé se traduziu na taça.
Pintom Pinot Noir 2020
Uva: pinot noir
País: Argentina
Região: Valle de Uco
Importador:Vinoterra
R$: 267,00
Como era mesmo o conceito de Dovskin? Clima frio, solo calcáreo, pureza de fruta e tensão na boca. Aplicada aqui na vinificação da pinot noir de El Cepillo (1,3 hectares) a Pintom entrega tudo isso e também algo mineral, terroso, herbáceo, com elegância em boca e aquele final de taça que encanta. Lembra alguns belos pinots da Patagônia, mas com um preço mais acessível.
Y La Nave Va Malbec 2020
Uva: malbec
País: Argentina
Região: Valle de Uco
Importador: Vinoterra
R$: 255,00
O nome do vinho é uma homenagem ao clássico filme de Frederico Fellini, E La Nave Va (1983). O cartaz original da obra exibia um rinoceronte embarcado no navio; no rótulo é um elefante que é conduzido numa canoa. Eu enxerguei como uma fina ironia. Minha interpretação pessoal: a malbec argentina, geralmente mais potente e sobremadura, aqui representada pelo elefante, ganha delicadeza, frescor do clima frio e uma leveza que permite que o elefante seja conduzido pela pequena embarcação. Sugeri esta analogia a Dvoskin, mas ele negou a inteção. Mas achei válida, pois para mim representa um pouco este malbec que vem do frio: frescor, fruta fesca (estou repetitivo, eu sei, mas é a marca registrada dos vinhos da Canopus), uma delicadeza rara em malbecs, mas com uma boa estrutura e acidez.
Y La Nave Va Malbec Sin Sulfitos 2020
Uva: malbec
País: Argentina
Região: Valle de Uco
Importador: Vinoterra
R$: 208,00
Aqui a malbec é proveniente de uma pequena parcela dos vinhedos de solo calcáreo (menos de meio hectare). No rótulo do Y La Nave Va Sin Sulfitos o paquiderme agora se equilibra num barquinho de papel. Continuando a interpretação pessoal do rótulo, em um vinho com menor intervenção ainda, a malbec ganha tamanha leveza e pureza que o peso do bicho é sustentado em embarcação mais frágil. O sulfito (SO2) é uma substância química permitida e adicionada em praticamente todos os vinhos. O objetivo é matar as bactérias e evitar oxidação, em especial no transporte das garrafas. Alguns produtores que buscam a menor intervenção possível e mais pureza arriscam não usar o sulfito. É o caso deste belo exemplar da Canopus, que também não passa por processo de filtragem. Gabriel Dvoskin considera este o rótulo que melhor representa sua busca por vinho mais natural, de caráter e tensão. Quem sou eu para contrariar? O mais surpreendente – e natural – Viño del Frio da Canopus fechou nosso encontro. E este texto.
- Leia também: 50 vinhos argentinos que vale a pena conhecer. Parte 1 – Salta e Patagônia
- Leia também: 50 vinhos argentinos que vale a pena conhecer. Parte 2 – malbec de Mendoza
- Leia também: 50 vinhos argentinos que vale a pena conhecer. Parte 3 – vinhos de corte de Mendoza
- Leia também: 50 vinhos argentinos que vale a pena conhecer. Parte 4 – vinhos de Mendoza sem malbec