Às vezes você depara com um rótulo que se declara orgânico, biodinâmico, natural. E pode se perguntar: mas todo vinho não é um alimento? Um produto da terra, natural, obtido da fermentação da uva? Qual a diferença dos vinhos orgânicos e biodinâmicos do resto dos vinhos?
O produtor dos vinhos biodinâmicos do Château Le Puy, Jean-Pierre Amoreau, de Saint-Emilion, em Bordeaux, classifica os vinhos produzidos pelo mundo em dois tipos:
1. Os vinhos de sensação – são aqueles que buscam aumentar as percepções de aromas, o gosto da madeira, da fruta excessiva e que com isso perdem sua identidade local. São sensações manipuladas artificialmente. São os vinhos que passam pelo processo comum, com uso de fertilizantes químicos e correções de mosto na adega, entre outros truques.
2. Os vinhos de exceção – são aqueles que têm o gosto real da uva, que são a tradução da natureza, que nos dá prazer de beber mais de uma taça. E principalmente são saudáveis ao ser humano. São vinhos orgânicos e biodinâmicos, que respeitam a terra, a biodiversidade e as influências dos planetas.
Orgânicos & Biodinâmicos
E entre os biodinâmicos e orgânicos, há alguma característica que os diferencie? Como eles são afinal?
Se coubesse algum paralelo simplificador, o vinho orgânico poderia ser definido como um vinho com atitude, e o vinho biodinâmico como um vinho com ideologia. Mas vamos explicar melhor:
Vinho orgânico é aquele que é produzido sem o uso de agrotóxicos, como pesticidas, herbicidas e fertilizantes sintéticos que são substituídos por compostos orgânicos e pelo uso de animais que são predadores naturais de alguns insetos e pragas. Na adega também são evitados quaisquer artifícios de vinificação que não sejam naturais da uva, como leveduras de laboratório, microoxigenção e outras maquiagens. Um dos principais objetivos do cultivo orgânico é produzir alimentos mais saudáveis e manter a sanidade e a biodiversidade do terreno. Ou seja, um vinho mais puro e saudável.
Vinho biodinâmico é um passo além do orgânico, acrescentando ao manejo natural da terra e o respeito à vinificação sem aditivos a energização e revitalização do vinhedo através de princípios básicos da biodinâmica – ciência baseada nos estudos do filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925): o homem não deve alterar os equilíbrios naturais do campo; deve-se observar os ciclos do cosmo e a influência da lua e do sol sob as plantas; proteger a biodiversidade, ou seja, a relação entre os reinos mineral, vegetal e animal. O vinho, além de mais puro e saudável, interage e absorve as forças cósmicas.
Os princípios e a prática
Não se trata de uma moda, ou de uma adaptação do ludismo ao campo – movimento contrário à mecanização no princípio da Revolução Industrial -, mas de uma volta a certos princípios da agricultura do começo do século XX, quando a revolução no campo não havia disseminado o uso de defensivos agrícolas e outras artifícios que aumentaram a produtividade, mas que o uso indiscriminado é prejudicial à terra e aos alimentos. Os vinhateiros adeptos aos vinhos orgânicos e biodinâmicos alegam que simplesmente estão fazendo os vinhos de hoje com respeito à natureza, assim como faziam seus pais, ou melhor, seus avós. Sem interferência.
Na prática, a coisa é mais complicada. Os vinhedos orgânicos precisam ser reconvertidos para se purificar de tratamentos químicos e externos anteriores. Isso leva tempo e dinheiro. E depois ainda precisam ser certificados.
Já os vinhos biodinâmicos necessitam de mais tempo ainda, e mais certificação. É preciso reprogramar todo o campo para manter um sistema fechado, em que o vinhedo é contido em si mesmo, não recorre a forças externas. Este trabalho envolve preparação de compostos naturais, adaptação a um calendário biodinâmico que observa a influência da luz do sol e das energias da Lua e dos planetas e por fim um compromisso com a conservação da biodiversidade local. “Como podemos conceber nossa Terra como algo totalmente isolado do resto do cosmos?” provoca o produtor do cultuado vinho branco Coulée de Serrant, em Savennières, Nicolas Joly, em seu livro “Vinho do Céu à Terra – Cultivar e Apreciar o Vinho Biodinâmico”.
A questão da energia pode soar um pouco mais excêntrica a alguns ouvidos – ao meu, por exemplo -, mas como alega Jean Pierre Amoreau, biodinamismo não é magia, é um princípio físico. “Estamos vivos por que recebemos energia cósmica”, explica. “Existem plantas e minerais que concentram mais energia que outros, buscamos esta energia para aumentar a vida do solo”.
Para quem quer ir mais fundo na viagem cósmica aqui vai o registro. São seis os planetas/satélites ligados à viticultura: Saturno e Mercúrio ligados à forças do calor; Júpiter e Vênus às forças da luz; Marte e Lua, às forças da água.
Nicolas Joly resume com sinceridade os riscos e consequências da opção biodinâmica. “Praticar a biodinâmica significa também aceitar a familiaridade com outra linguagem, com outros métodos e presenciar, durante os primeiros anos, uma queda de produção ou um risco maior de doença. A reconversão não afeta unicamente a propriedade agrícola, mas também o indivíduo cuja motivação deveria ir além de simples objetivos comerciais. Finalmente – mas disso ninguém morre – algumas vezes é preciso esperar ser ridicularizado”
Leia também: O saca-rolhas sumiu! Como abrir sua garrafa de vinho
Uma experiência Sul-Americana
O consultor Álvaro Espinosa, recebeu, no final dos anos 90, uma missão dos irmãos José e Rafael Gullisasti: converter 1.000 hectares de plantações da Emiliana em vinhedos orgânicos e biodinâmicos. A Emiliana é a única vinícola chilena com manejo 100% orgânico. Ou seja, toda a linha, do vinho mais simples ao topo de gama, são orgânicos ou biodinâmicos. Entre eles o ótimo Coyam, o correto Adobe, encontrado em qualquer supermercado, e o excelente, expressivo (pera, mel, nozes) e barato Late Harvest (R$ 35,00).
Espinosa explica a conversão e a lógica do manejo orgânico: “Um vinhedo tradicional tem uma alta entrada de forças externas (químicos, leveduras etc) que resulta em um prazer artificial. A entrada de nutrientes artificiais faz a planta perder contato com a terra. “ E complementa: “O uso de clones selecionados, outro recurso comum em vinhedos tradicionais, faz a vinha perder identidade, pois vinhos únicos não são comparáveis, não são replicáveis.”
Mas afinal, é bom ou não é?
Diz Nicolas Joly: “Um vinho biodinâmico não é necessariamente bom mas é sempre autêntico. A biodinâmica, ao reforçar a vida natural do vinho, acentua a característica de cada videira.”
Álvaro Espinosa, consultor da chilena Emiliana e à frente do projeto Matetic, pondera: “Pode se gostar ou não gostar, mas não se fica indiferente a estes vinhos” E explica o essência do seu trabalho de enólogo da linha orgânica: “Importante não é identificar as uvas, mas o lugar de onde elas vêm”
Para completar, Liz Cereja, proprietária da Enoteca Saint Vin Saint, em São Paulo, que oferece uma carta apenas com exemplares orgânicos e biodinâmicos, esclarece de maneira informal: “Existem dos mais caros aos mais baratos. Gostos? Dos mais normais aos mais estranhos. Basta escolher um estilo de natureba para chamar de seu.”
É bom lembrar que a experiência inicial pode ser até traumática. Mas a recompensa pode ser alentadora. Liz Cereja narra suas primeiras experiências com um vinho biodinâmico mais radical e como acabou se envolvendo com o tema: “Achei muito estranho, pois eram vinhos que, para mim, tinham algo ‘diferente’ dos outros. Não pesavam. Eram fluidos. Tem alguns naturebas que assustam, pois são muito diferentes…” E continua: “Mas é um mundo sem volta. Você se apaixona pela sinceridade dos vinhos, dos produtores, pela preocupação com a saúde e com o equilíbrio da videira e dos seres humanos. Você se apaixona pela diversidade e pelos aromas e sabores totalmente não standarizados que eles têm. Você se apaixona pelo caráter de ‘resistência’ que eles têm, levantando uma bandeira de rebeldia em um mundo tão cheio de barbies do vinho.”
Este colunista não tem uma posição sectária. Mas tenho de confessar uma enorme simpatia pela maioria dos vinhos orgânicos e biodinâmicos que provei. Há uma vibração maior na bebida, uma qualidade de fruta e aromas diferenciados, que às vezes lembram terra e folhas molhadas ou frutas muito frescas. É como comparar a jabuticaba que se come no pé e aquela que vem embalada, ou o iogurte que se faz em casa e o industrializado. É natureba sim, mas profissional também (na maioria dos casos).
Vinhos consagrados e vinhos manifesto
O que têm em comum estes vinhos e produtores: Seña, Clos Apalta (Chile), Colomé (Argentina) o champanhe Jacques Selosse (Champgne), as cavas Raventós (Espanha), os borgonhas Romanée-Conti, Philippe Pacalet (França) e o alsaciano Marcel Deiss (França)? São todos vinhos prestigiados, pontuados, cultuados por todo tipo de bebedor e entendedor de vinho – e são biodinâmicos ou orgânicos. Os exemplos acima são apenas de rótulos consagrados, do primeiro time, e talvez você seja apreciador de um deles sem sem saber sua condição natureba.
O fato de ser biodinâmico não implica necessariamente na materialização de um vinho esquisitão, alternativo ou meio hippie, de um produtor/enólogo idem. Muitos destes exemplos são rótulos de grandes grupos, com forte estrutura de marketing e comercial. E enólogos que não ficam necessariamente pontificando sobre seu método de produção. São bons pelo que são.
Mas claro que existem aquela turma do vinho manifesto. Alguns representantes pegam pesado na doutrina e entoam mantras um tanto radicais. Os vinhos “naturebas”, assim como os jovens que tomaram as ruas do país em junho de 2013 em protestos que juntaram milhões, também têm uma causa a defender
Jean-Pierre Amoreau, do Château Le Puy, citado no início deste artigo, faz parte desta turma. O vinho – e o vinhedo – é recheado de dogmas e seu discurso na defesa do biodinamismo e contra “eles” é radical. Entenda-se por “eles” os vinhos de expressão, comerciais. Em um encontro recente, quando Jean-Pierre apresentou várias safras do Le Puy, ele fez questão de ler um relatório de uma análise que mandou fazer em amostras de prestigiados Grand Cru Classé – o topo da pirâmide dos vinhos de Bordeaux. Não revelou o nome dos vinhos, mas fez questão de destacar que foram encontradas nas amostras até 276 tipos de pesticidas, ou seja, eram vinhos que além de não revelarem a real expressão de sua uva podiam ser nocivos à saúde, e enumerou uma série assustadora de doenças que estes elementos podiam causar aos seus consumidores. Com uma taça de seu vinho na mão, provocou: “Agora que vocês acabaram de provar vinhos naturais e biodinâmicos, eu pergunto. Vocês não se importam se o vinho é natural, sem presença de produtos químicos? Não se preocupam com o que a maioria dos vinhos de sensação podem provocar ao seu corpo?”. Um convidado rapidamente retrucou: “Se for um Haut-Brion, por exemplo que eu adoro, não me importo não”.
Nicolas Joly, outro radical verde, reforça a tese. Em seu livro, ele identifica o inimigo: “O emprego dos primeiros herbicidas marcou não apenas o início de um empobrecimento mas também o primeiro passo para a dependência, aumentada a cada ano até o ponto da escravidão, em relação à indústria agroquímica”.
Ironias e teorias à parte, a base do vinho biodinâmico consiste em obter: melhor uva, mais saudável e de melhor qualidade.
8 indicações de vinhos orgânicos e biodinâmicos
A pedido do Blog do Vinho, Lis Cereja indica alguns rótulos para quem quer começar esta viagem, ou mesmo para quem já embarcou nela. Confira:
Custo- benefício:
- Dominio Vicari, Brasil, Vicari.
- Volandera La Calandria, Espanha, Dominio Cassis
- La Chochotte du Boulon, França, Bionysos
- P´tit Piaf Merlot, França, Galeria do Vinho
Vinhos diferentes, para “sacudir” o paladar:
- Huasa de Pilen Alto, Chile, World Wine
- Alterité, França, Bionysos
- Kharacter, França, World Wine
- Gaitu, Itália, Galeria do Vinho.
Importadoras de alguns vinhos citados nesta coluna
- Emiliana Adobe/Coyam/Late Harvest – La Pastina
- Clos Apalta – Mistral
- Colomé – Decanter
- Jacques Selosse – World Wine
- Raventós – Decanter
- Le Puy – World Wine
- Romanée-Conti – Expand
- Philippe Pacalet – World Wine
- Coullée de Serrant – Casa do Porto
- Marcel Deiss – Mistral
- Matetic – Grand Cru
- Seña – Expand
Serviço
Enoteca Saint Vin Saint
- Endereço: R. Prof. Atílio Innocenti, 811 – Itaim Bibi, São Paulo
- Telefone:(11) 3846-0384
- Site: www.saintvinsaint.com.br
Publicado originalmente em julho de 2013
Estive este ano conhecendo a Emiliana e a forma de produção – a paixão deles pelo vinho organico é contagiante e a beleza do vinhedo incrivel. Sem dúvida o Coyen é uma grande experiencia.
Maravilhoso vinho “sem máscaras” de Lizete Vicari, da Praia do Rosa.
Está em nosso bistrô, na Hospedaria Ponta da Piteira!
http://www.pontadapiteira.com.br
olha que materia interessante,mande pra dato tb!
É a eterna questão do Custo X Benefício. Bons vinhos com pequena produção e preço justo? Ou grandes produções e custo reduzido, qual é a opção?
Os produtores devem pensar em produtos de qualidade e o desgoverno do Brasil deve reduzir a carga tributária. O vinho aqui é muito caro, diferente dos EUA.
Excelente matéria, faltou apenas citar o célebre Marcel Lapierre ( Morgon / Clos Ouvert)
Um dos maiores nomes no assunto..
Caro Leandro
Obrigado por sua participação. Bem lembrando a citação de Marcel Lapierre, do Clos Ouvert.
É muito bom ter leitores atentos e com mais conhecimento que o colunista
abraços
Parabéns pelo posting Beto! O melhor acontecimento no mundo do vinho das últimas décadas foi o advento do Vinho Natural. No final dos anos 70, Marcel Lapierre, Guy Breton, Jean-Paul Thévenet, Jean Foillard, e Joseph Chamonard, se uniram e revolucionaram a convencional industria vinícola. A qualidade dos “Naturebas” estão evoluindo a cada ano, como tem tambem aumentado o numero de produtores que estão se aderindo à prática. O vinho natural é autêntico, puro e original. Quem toma vinho natural não consegue tomar vinho convencional.
http://www.vinhonatural.com.br
Bom dia Beto.
Não concordo muito com suas definições de vinhos orgânicos e biodinâmicos.
O fato de um vinho ser considerado orgânico ou biodinâmico está restrito à agricultura. Se há ou não o emprego de pesticidas e herbicidas. O que acontece na cave, é outro assunto. Aí surgem os vinhos chamados “Naturais”, onde há o minimo de intervenção possível.
Ou seja, o fato de o vinho trazer em seu rótulo que é orgânico ou biodinâmico, pra mim, não diz nada, pois não sabemos o que foi feito na Cave. Todo vinho natural é orgânico, mas o contrário, não pode ser afirmado.
P.S.: Marcel Lapierre morreu ano passado.
Desculpe o erro. Lapierre morreu em 2010, um pouco após a colheita daquele ano.