Toda vez que ouço o jargão “vinho bom é aquele que você gosta” me dá uma coceira na cabeça. É uma meia-verdade. Além de ser uma obviedade ululante – aquilo que você gosta sempre é bom para você – é uma redução populista e nociva ao universo do vinho. É o jargão do especialista envergonhado, do marqueteiro atrás do resultado. Pode até ser bem intencionado. Mas… Vinho bom é aquele que tem qualidade. Vinho bom é uma coisa; aquele que você gosta pode ser bom ou não, simples assim. Como tudo na vida.
Outra demagogia que insiste em se perpetuar é aquela que propõe “descomplicar o vinho”. É uma pegadinha. Sinto muito, mas o conhecimento do vinho é meio complicado mesmo. E quem costuma dizer que consegue descomplicar o vinho no geral complica a si mesmo e engana o leitor. Não se trata de defender a elitização (mais ainda) do vinho e seu complicado vocabulário. É possível e importante tratar o tema de uma maneira mais descompromissada, bem humorada, didática (este blog tenta esta linha). O vinho precisa comunicar melhor, aderir à interação direta com seu público, usar e abusar de mídias sociais. Renovar sua mensagem. Mas ela tem de ser verdadeira. Achar que o conhecimento do vinho é fácil de assimilar é ludibriar o iniciante da bebida e impedir que ele evolua no tema. O universo do vinho não cabe em jargões reducionistas.
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Não confundir com beber. O ato de beber é mecânico: basta levar a taça, o copo ou mesmo o gargalo da garrafa até a boca e despejar o fermentado de uva goela abaixo. Serve pra vinho, água, cerveja ou leite. Já compreender as sutilezas do vinho, sua origem, história e ampliar o conhecimento da bebida exige uma vontade de aprender com a tradição, de absorver o novo e um pouco de paciência também. É uma experiência legal e enriquecedora, que no fundo vai melhorar a sua relação com o vinho. Você vai curtir mais e valorizar mais ainda o dinheiro investido nas garrafas.
O vinho e sua imagem
O vinho sofre de uma síndrome de deslocamento. É uma bebida prazerosa, rica de aromas, sabores, história e diversidade. Mas também é um símbolo de ostentação, esnobismo (salvem os enochatos!), difícil de entender e caro de se adquirir. Ao mesmo tempo que é uma bebida alcóolica com raízes religiosas e patrimônio cultural em várias parte do mundo, ocupa uma posição associada ao andar de cima no imaginário popular (andar de cima é uma definição usada pelo jornalista Elio Gaspari para designar as elites do país). Para o andar de baixo o vinho é um símbolo de ostentação, frescura e um tanto inacessível pelo alto preço (em oposição à cerveja, por exemplo, que seria mais acessível, fácil de entender e portanto mais democrática).
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Quantas vezes vinho caros, absurdamente caros, não aparecem em grande destaque nas manchetes como fruto de pagamento de propina entre políticos, empresários e entes públicos? O sujeito surrupia bilhões dos cofres públicos, mas a foto que ilustra a reportagem e o flagra do delito é sua adega com rótulos estrelados: borgonhas grand cru, bordeuax premier cru, champagnes safrados, entre outros. Mesmo alcançando preços pornográficos de mercado, vamos combinar, estas garrafas nem fazem cócegas no valor total assaltado dos contribuintes (meu, seu, de todos nós). Mas é uma mensagem de fácil compreensão. Quase uma santíssima trindade do esquema das negociatas espúrias: vinho caro – poderosos – corrupção.
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Para romper esta imagem e alcançar um público maior o pessoal do marketing, os especialistas e o mercado criaram este discurso pretensamente democrático mas demagógico: vinho bom é aquele que você gosta; o resto é embromação afetada, seria o subtexto. Aquele bando de chatos querendo dizer o que você deve beber… Em tempos de populismo digital, de negação da cultura, desprezo ao conhecimento e verdades paralelas baseadas em argumentos falaciosos, é discurso ideal.
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Dizer que vinho bom é aquele que você gosta expressa o mesmo valor que afirmar que literatura boa é aquela que você gosta. No primeiro caso se desdenha toda uma cadeia de profissionais que busca excelência de seu vinhedo, aprimoramento na enologia, cuidado na adega para criar um bom produto e despreza a capacidade de avaliação de profissionais que provam vinhos. Vale qualquer zurrapa portanto que seja vinho. No segundo, ignora-se o valor das obras-primas, dos cânones da literatura ao longo da história e de um consenso da crítica apenas para não ficar mal com o leitor que não aguenta o tranco de um clássico.
Vinho bom é aquele que tem qualidade
Repetindo: vinho bom é aquele que tem qualidade. Ponto. O consumidor pode ou não gostar dele, mas aí é outra história. Envolve gosto pessoal, conhecimento, experiência, paladar e “litragem”. Vinho bom é uma coisa, de grande volume, para consumo de massa é outro busílis. Eventualmente pode existir um bom vinho de grande volume, por que não? O mesmo vale para a boa literatura. Há os bons best-sellers e os livros de consumo imediato bem-feitos.
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Há os vinhos descompromissados, leves, de consumo rápido, alegres, frutados. E há aqueles no topo da pirâmide, chamados de premium. Na taça de um iniciante um vinho de excelência, com mais tempo de garrafa e suas sutilezas muitas vezes não provoca as mesmas reações que são percebidas por um conhecedor. Óbvio: experiência é algo que se adquire com o tempo. A comparação continua valendo para a literatura, não se começa o hábito da leitura com Guimarães Rosa, mas vale para outros universos: cinema, gastronomia, automóveis, etc
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Algumas das razões para considerar o bom vinho um vinho bom:
Um vinho é bom, do ponto de vista qualitativo, por uma série de razões: proveniência e sanidade das uvas, solo, clima, local, adaptação da uva a uma região, métodos de vinificação, escolhas do enólogo, complexidade, acidez, taninos, aromas, paladar, intensidade, longevidade e por aí vai.
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O vinho bom é aquele que…
…se preocupa em revelar a origem de um lugar
…segue a tradição de sua região e história de seu estilo
… revoluciona métodos da região e cria um novo estilo
…tem uma história para contar
…respeita o solo, o clima e os vinhedos
…recupera variedades nativas
…tem a a menor intervenção possível no vinhedo e na adega
…não usa de aditivos estranhos e nocivos à saúde
…é sustentável
..permite identificar as características da(s) uva(s)
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…busca a maior relação de qualidade e preço para o consumidor
…tem acidez, não é monótono nem enjoativo
…usa a barrica para melhorar o vinho e não para deixar com gosto de madeira
…é feito para envelhecer na garrafa e ganhar outros aromas e sabores com o passar do anos
…é feito para ser consumido rápido (depende do estilo, da uva e do propósito)
…vira assunto numa mesa
… te faz refletir
…te faz sorrir
… é ideal para celebrar
…perfeito para namorar
…te faz até xingar de satisfação
…você pode comprar
…vira objeto de desejo
…dá prazer em beber
Vinho bom é o que você gosta (mas não apenas o que você gosta, talkei?)
Olá, Beto
Que agradável surpresa tive hoje ao descobrir teu blog. Sou apreciadora de vinhos. Mesmo sem saber absolutamente nada sobre este universo tão encantador, fui convidada a escrever sobre ele. Nada comparado à qualidade dos teus textos. Fiquei feliz! Um abraço. Saúde!
Oi Iaramaia Loiola
Que bom que você descobriu o blog, e gostou. Obrigado por seu comentário. Escreva sim, faz parte do aprendizado, a gente pesquisa, se arrisca e organiza as ideias. E compartilhar é parte do universo do vinho. Saúde, sucesso e apareça!