Certamente você já se perguntou o que existe de tão especial no vinho. Ou qual a diferença entre um vinho de 30 reais e outro de 300. Ou ainda o que torna um vinho bom para o consumidor ou para os críticos. Olhando para sua conta bancária, talvez uma dúvida chegue a irritar o bom senso: o que leva algumas pessoas a pagar fortunas por uma garrafa de uva fermentada? Afinal, é apenas uma bebida alcoólica que deveria ter o propósito de acompanhar uma refeição, alegrar uma celebração ou deixar uma conversa entre amigos mais agradável.
Mergulho no mundo do vinho
A jornalista Bianca Bosker se fez várias destas perguntas. Mas uma especial acionou o gatilho que levou a se aprofundar sobre o tema: o que motiva os profissionais do serviço do vinho, os sommeliers, a estudar horas a fio sobre regiões, uvas, estilos e provar todos os tipos de vinho disponíveis para se submeter a provas de avaliações às cegas? O resultado deste mergulho está descrito nas 350 páginas do delicioso livro “Cork Dork – Loucos por Vinho”, da editora Sesi-SP.
Em vez de tripudiar todas as esquisitices e maneirismos dos homens (e mulheres) que cospem vinho, um caminho fácil para quem não compreende o vocabulário peculiar dos apaixonados por vinho, Bosker resolveu entrar de cabeça neste mundo para tentar decifrá-lo. Largou seu emprego de jornalista especializada em tecnologia, deixou de tomar café, de usar perfume e por dezoito meses evoluiu do estágio de eventual bebedora de chardonnay barato para o nível de uma competente sommelière. Passou por empregos de estoquista de adega, assistente de sommelier, se inscreveu em concursos, pesquisou adoidada. Mas o que moldou toda sua experiência foi a assombrosa quantidade de vinho que provou neste período.
Leve, bem-humorado, didático e apaixonante
Bianca Bosker cometeu um livro que se eu fosse menos preguiçoso, mais disciplinado e principalmente mais talentoso, gostaria de ter escrito. A edição brasileira foi lançada no final de 2018 e tem como responsável pela revisão técnica um dos maiores conhecedores de vinho do Brasil, meu amigo José Osvaldo Albano do Amarante. Foi o suficiente para eu tirar o livro da prateleira da livraria e levar para casa. Coisa ruim não podia ser.
O texto é leve sem ser raso, bem-humorado sem ser vulgar, didático sem ser chato. Não se trata apenas de descrever o vinho, mas da paixão que a bebida exerce sobre um número razoável de pessoas. Bosker consegue levar o leitor pelo mundo do vinho usando como fio condutor sua jornada em busca do certificado do prestigiado Court of Masters Sommeliers. Neste tempo, conviveu com “aficionados por sabores, cientistas sensoriais, caçadores de garrafas incríveis, gênios do olfato, hedonistas embriagados, vinicultores avessos a regras e (principalmente) sommeliers ambiciosos.” Entre muitos goles e novos rótulos ela encontra espaço para discutir questões dos sentidos, do olfato, da indústria, do papel dos sommeliers, dos críticos, da subjetividade dos descritores do vinho, mostra os bastidores das adegas de grandes restaurantes de Nova York, conversa com cientistas, participa de concursos e até se submete a uma máquina de ressonância magnética para identificar as áreas do cérebro afetadas por um degustador profissional.
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Orgia
Há passagens deliciosas como do evento La Paulée de Nova York, descrito no capítulo “Orgia”, que reúne por uma semana milionários e amantes de vinho e que culmina em um jantar de 1.500 dólares em que cada participante leva o melhor vinho de sua adega. Uma sucessão de rótulos magníficos, que mereceriam horas de interpretação se fossem servidos individualmente, são dispensados após o primeiro gole para em seguida dar vez a outro vinho raro. É uma sucessão de Premières Crus, Grand Crus, Barolos… O registro é um retrato bastante fiel das degustações de elite onde a apreciação dá lugar ao exibicionismo e à quantidade (com qualidade). Bianca Bosker conclui: “Do seu modo único, La Paulée era um laboratório que provava que o sabor não vinha apenas das narinas e da boca, como supomos com frequência. Saboreamos com a mente”.
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Importância do olfato
A repórter vai atrás de personagens importantes como Ann Noble, que criou a famosa roda dos aromas na Universidade Davis, na década de 90, na tentativa de tornar os descritivos do vinho menos subjetivos. São 60 descritores em forma de diagrama circular que se tornaram a língua franca dos avaliadores e consumidores de vinho que curtem identificar aromas flores, frutas, especiarias etc. Bosker parte do princípio de que a melhor maneira de refinar seu vocabulário sobre o vinho seria através da responsável por sua invenção. Agora aposentada, Ann Noble a recebeu em sua chácara na Califórnia e demonstrou seu método de aprendizado de descritivos aromáticos. “Preste atenção a seu nariz”, ensina. “aplique palavras aos odores”.
“Se você não armazenar as informações de maneira que sejam recuperáveis é apenas uma coisa amorfa que volta amorfa”, recomenda. Bosker aprendeu que o olfato, considerado desde Platão e Aristóteles como nosso sentido menos apurado, é mais importante para o vinho que o sabor. Fica a dica.
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A objetividade nos descritores dos vinhos foram saudáveis para a orientação dos consumidores e produtores. Na outra ponta, padronizam em excesso a avaliação. Confesso que me envergonho toda vez que sapeco um “frutas vermelhas” num óbvio vinho tinto. No entanto, é mais preciso que “instigante”, “peculiar”, vamos combinar. Em contraposição, são divertidas, e talvez mais úteis para memorizar, algumas das associações que Morgan Harris – o sommelier “encantador de vinhos” que acompanha a autora pelo livro – faz de alguns vinhos. Exemplos:
- “O pinot da Borgonha é um verdadeiro safado. É como cara que costuma tratar muito mal a namorada mas aparece no momento certo com chocolate e flores” – sobre vinhos da uva pinot noir da Borgonha
- “Este incrível Hulk acaba de sair de um reator nuclear” – sobre um shiraz australiano.
- “Uma maldita lâmina de barbear” – um riesling austríaco
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Nem tudo é verdade
O lado menos glamouroso do mundo do vinho é mostrado pelas empresas especializadas em transformar qualquer garapa em um vinho minimamente agradável. Eles vendem componentes químicos que podem tornar o caldo mais frutado, mais amadeirado, com menos taninos com o objetivo de adaptar uma produção de volume ao gosto do consumidor médio. Por exemplo, há um concentrado de suco de uva, de nome Mega Purple, também chamado de “poção mágica”, que deixa o vinho mais redondo, com toque mais doce, mais fruta e com a cor mais rica. Ou então leveduras que imitam um Bordeaux envelhecido (Lesaffre), ou que acentue aromas de manteiga fresca e mel (CY3079). É maquiagem? Claro que sim. Então o que você sente no vinho pode ter sido produzido artificialmente? É, pode. O resultado porém são vinhos mais palatáveis que movimentam a base da pirâmide do consumo. E como se sabe, o topo não se sustenta sem a base. Mesmo que os pés sejam de barro.
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A (des)importância dos críticos
Bosker mostra que para agradar os críticos especializados, empresas como a Enologix usam softwares de análise de composição química do vinho para calcular as notas que a bebida receberá das publicações e blogs especializados: são 100 componentes considerados essenciais para obter uma boa nota e sair bem na fita. Mas se o interesse do produtor for vinho por volume, a voz dos críticos e cuspidores de vinho não faz a menor diferença. A Tragon, empresa especializada em ajudar vinícolas a elaborar rótulos de sucesso, diz em um relatório que “a relação entre os vinhos bem avaliados pelos críticos e os que os consumidores apreciam é… zero. As notas obtidas ‘não refletem os grupos demográficos ou de preferência’.” Ou seja, melhor os palpiteiros do vinho, incluindo este que vos escreve, calçar as sandálias da humildade e entender seu papel na engrenagem: próximo de zero…
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O sommelier como gerador de caixa no restaurante
Como a proposta da autora é de se tornar uma profissional da área, o papel do sommelier na geração de receita de um restaurante também entra no livro. Afinal por mais poesia que tenha o vinho, trata-se de um negócio. Os bastidores do serviço do vinho são mostrados de vários ângulos, desde as regras de conduta e operação até a estratégia de sugestão de rótulos de acordo com o bolso de cada cliente. Clientes identificados como grandes gastadores são tratados como PX (personne extraordinaire). “Eles precisam ser acarinhados, mimados, divertidos e incitados a gastar, a todo custo”, revela um trecho do livro dedicado ao assunto, o capítulo “Reino Mágico”. Um exemplo pinçado do livro: o maitre do restaurante Marea, de Nova York, indica um “grande PX de vinho na mesa 8”, uma das mesas mais cobiçadas. “O sr. Peralta, do Brasil – informou. – um brasileiro rico.”. Fiquei orgulhoso. Estamos representados no livro! O brasileiro não decepciona nunca, né não?
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Um gole leva a outro
Mas afinal, o que identifica um grande vinho? O que nos faz querer provar tantos rótulos? Um trecho final de Cork Dork – Loucos por Vinho, sugere a resposta mais próxima da verdade. E é de uma simplicidade franciscana: “um gole leva a outro”. Eu me identifiquei. Faço minhas as palavras de Bianca Bosker:
Uma taça de um grande vinho leva à segunda por que o primeiro gole desperta um sentimento de surpresa e curiosidade. Os grandes vinhos nos fazem querer mais goles – e mais taças – não por que estamos com sede, mas por que há algo que não entendemos completamente da primeira vez, algo que nos deixa curiosos, que é enigmático.
“Um gole leva a outro” comprova, também, que o vinho é um processo. Os bons vinhos levam você a experimentar algo diferente. A primeira taça de um vinho pode levar à segunda de algo diferente, talvez melhor, talvez pior, mas pelo menos uma nova experiência, como novas dimensões.
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