A denúncia do uso de trabalho análogo à escravidão em serviços terceirizados por vinícolas do sul do país trincou a reputação das empresas, manchou a imagem do vinho nacional e colocou em xeque o jornalismo especializado e seus “influencers”. Escancarou também vários problemas estruturais (nem sempre) escondidos embaixo do tapete: racismo, trabalhos forçados e riscos da terceirização na cadeia produtiva. Levantou a dúvida se esta conduta não foi praticada no passado. E confirmou ainda a falta de habilidade de as empresas enfrentar crises e a lógica destrutiva das redes de cancelar o produto e não as raízes do problema.
O trabalho escravo
Na quinta-feira, 23 de fevereiro, o Jornal Nacional noticiou em rede nacional o resgate de 207 trabalhadores em condições de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. A empresa acusada de trabalhos forçados, maus tratos, péssimas condições de alimentação e alojamento tem nome e sobrenome: Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA. O aliciador dos trabalhadores e administrador da empresa, Pedro Augusto Oliveira de Santana, foi preso e solto após pagamento de 39.000 reais de fiança. A reportagem apenas citava o envolvimento de vinícolas na terceirização de serviços prestados por estes trabalhadores, mas não revelava os nomes. O segredo durou pouco. Na mesma noite, perfis de redes sociais cobravam a divulgação das vinícolas envolvidas e logo apareceram três grandes do setor: Cooperativa Garibaldi, Aurora e Salton.
O chamado trabalho análogo à escravidão é inconcebível sempre. É considerado trabalho análogo à escravidão pelo Ministério do Trabalho (MiT) aquele em que o trabalhador é submetido a jornadas exaustivas, a condições insalubres e a restrições à sua liberdade. Em 2023 parece ser inimaginável. Mas não é esta a realidade mundial. Estimativas da OIT (Organização Internacional do Trabalho) relatam a existência de 27,6 milhões de pessoas em situação de trabalho forçado, 17,3 milhões são exploradas no setor privado; 6,3 milhões estão em situação de exploração sexual comercial forçada e 3,9 milhões em situação de trabalho forçado imposto pelo estado. No Brasil, segundo dados do Ministério do Trabalho, apenas no ano de 2022, 2575 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à da escravidão. 83% se autodeclaram negros. Mais da metade dos resgatados (58%) são nascidos na região Nordeste.
Os trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves são baianos e negros em sua maioria. E sofreram torturas.
O vinho é um produto associado ao prazer, à celebração e, entre os apreciadores, a digressões intermináveis sobre seus aromas, sabores e origens. Mas estas denúncias avinagraram o vinho nacional produzido na região de Bento Gonçalves. Desde a divulgação da denúncia, um retrogosto cada dia mais amargo é associado à bebida.
O(s) posicionamento(s) das vinícolas
O crime, com origem no sistema de terceirização de mão-de-obra no campo e na falta de controle das empresas contratantes, gerou inicialmente uma reação pendular e errática das vinícolas, um comunicado inacreditável de uma associação do setor e foi coroado por um discurso racista e aviltante de um político da câmara de vereadores de Caxias do Sul. Muitos tiros no pé na sequência. A repercussão escalou. As vinícolas floparam na rede. Os danos estão aí.
Problema dado, problema a ser enfrentado. Esta é a lógica. Toda empresa está fadada a enfrentar algum problema de imagem, em especial quando detectado algum erro de conduta, de normas, de gestão ou falhas em seus processos de compliance. E neste caso, que erro! Pessoas iludidas e submetidas a um regime de trabalho análogo à escravidão. As vinícolas precisam ser responsabilizadas e cumprir as determinações do Ministério Público do Trabalho.
As empresas, no geral, replicam em seus posicionamentos os cinco estágios do luto: primeiro a negação e o isolamento (não respondem à imprensa), em seguida a raiva (culpam a imprensa, apenas o terceirizado ou mesmo o governo), a barganha (tentam negociar uma retração que não prejudique muito o negócio); a depressão (internamente as diretorias realizam o tamanho do estrago) e finalmente a aceitação (quando pedem desculpas à sociedade, reconhecem e repudiam publicamente as práticas que geraram o problema e as falhas internas de gestão; adotam medidas efetivas para reparação e ressarcimento dos danos, e colocam em prática mudanças para melhorar seus processos.)
Foi este o roteiro seguido. Entre os primeiros posicionamentos, no dia 27 de fevereiro – em que as vinícolas reconhecem algum problema, mas tentam se eximir da culpa – até as cartas abertas à sociedade e comunicados disparados pelas assessorias no início de março, houve uma tremenda mudança de postura. Depois de titubear, as empresas repudiaram esta violação dos direitos humanos. Foram, no mínimo, inábeis. A ponto de o gerente de marketing da Cooperativa Vinícola Garibaldi, Maiquel Vignatti, ter escrito em sua conta do Linkedin que as postagens contra o trabalho escravo era uma “lacração” das redes. Conseguiu um efeito reverso e inédito: uma saraivada de críticas numa rede social que nem é habituada a este tipo de reação.
As três vinícolas são empresas com um legado e história: Salton (112 anos), Cooperativa Garibaldi e Aurora (92 anos). Não tiveram ua ação ativa, mas reativa. Em vez de saltar na frente e reconhecer o tamanho do escândalo assim que a denúncia se tornou pública, esperaram arder em praça pública na fogueira das redes sociais e nas páginas da imprensa. À medida que depoimentos cada vez mais contundentes dos trabalhadores resgatados vinham à tona pelo noticiário o discurso finalmente mudou.
A falta que um gestor com visão, como Ângelo Salton, faz como porta-voz do vinho nacional…
As três versões
A comparação entre trecho do posicionamento inicial das vinícolas e as cartas que publicaram no início de março demonstram uma mudança radical e uma direção mais correta. Mas infelizmente este novo discurso veio apenas após a pressão da sociedade, da imprensa, do Ministério do Trabalho, e da suspensão das empresas da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil). Na noite de quinta-feira, 9 de março, foi firmado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com as Vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton com o Ministério Público do Trabalho – MPT, em que as empresas se comprometem a pagamento de 7 milhões em indenizações por danos morais individuais e coletivos. O valor será dividido entre R$ 2 milhões a serem destinados aos trabalhadores resgatados e R$ 5 milhões revertidos para entidades, fundos ou projetos voltados para a reparação do dano e pago em até 15 dias. Uma terceira versão de comunicado à imprensa foi distribuído, para conhecimento da sociedade. A Fênix, empresa responsável pela contratação dos terceiros, se recusou a assinar um TAC (termo de ajuste de conduta) e teve retidos 3 milhões de reais. Segundo o MPT, o descumprimento de cada cláusula será passível de punição com multa de até 300 mil reais, cumulativas, a cada constatação.
Salton
Primeira versão:
Em primeira nota afirmava que a empresa “não compactua com essas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo” (…) “a empresa não possui produção própria de uvas na serra gaúcha, salvo poucos vinhedos […] manejados por equipe própria”, mas admitia que tinha contrato com sete trabalhadores da empresa em cada turno para o descarregamento de carga.
Segunda versão
“A Salton repudia, veementemente, qualquer ato de violação dos direitos humanos e expressa, também, seu repúdio a todas e quaisquer declarações que não promovem a pacificação social.”
“Não adotamos e nem adotaremos uma posição omissa. De imediato, tomamos medidas internas que dizem respeito à melhoria do trabalho em toda nossa cadeia produtiva”
“Ao tomarmos ciência do gravíssimo resgate ocorrido nas dependências da empresa prestadora de serviço, suspendemos imediatamente o contrato de trabalho. Além disso, em total colaboração com o Ministério Público do Trabalho, fizemos depósitos para o pagamento do fornecedor, visando a garantia das verbas rescisórias e retorno dos trabalhadores a seus lares.”
Terceira versão (íntegra)
“A Vinícola Salton firmou, nesta quinta-feira (09/03), acordo com o Ministério Público do Trabalho para reparar danos causados a trabalhadores e à sociedade, em função de resgate ocorrido nas dependências da empresa Fênix Serviços Administrativos, flagrada mantendo trabalhadores em condições degradantes em um alojamento em Bento Gonçalves. A Salton contratou 14 trabalhadores desta prestadora de serviços para carga e descarga de caminhões de uva na safra 2023.
Os termos do acordo, assinado pelas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, reforçam que as empresas concordaram voluntariamente com o pagamento, sob a forma de indenização, no valor de R$ 7 milhões, a ser rateado pelas empresas. Além de compor o fundo dos trabalhadores resgatados, o valor será revertido a entidades, projetos ou fundos que permitam a reparação dos danos sociais causados, a serem oportunamente indicados pelo Ministério Público do Trabalho.
A Salton ressalta que assinatura voluntária deste termo tem o intuito de reforçar publicamente seu compromisso com a responsabilidade social, boa-fé e valorização dos direitos humanos, bem como a integridade do setor vitivinícola gaúcho.
A Salton e as demais vinícolas construíram conjuntamente com o Ministério Público do Trabalho procedimentos para fortalecer a fiscalização de prestadores de serviços para evitar que episódios lastimáveis voltem a ocorrer. Além disso, o acordo prevê, também, ampliar boas práticas com relação à cadeia produtiva da uva junto aos seus produtores rurais.
Por fim, o acordo se encerra com a declaração de que sua celebração “não significa e não deve ser interpretada como assunção de culpa ou qualquer responsabilidade” por parte das vinícolas pelas irregularidades constatadas na empresa prestadora de serviços Fênix Serviços Administrativos.
A Salton reforça que cumprirá prontamente as determinações do acordo e reitera que atuará ainda em frentes adicionais já apresentadas em nota pública, tais como revisão de todos os processos de seleção e contratação de fornecedores, com implantação de critérios mais rigorosos e que coíbam qualquer tipo de violação aos dispositivos legais, incluindo direitos humanos e trabalhistas; contratação de auditoria independente externa para certificar as práticas de responsabilidade social; adesão ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, entre outros.
A empresa reitera que repudia, veementemente, qualquer ato de violação dos direitos humanos e expressa, também, seu repúdio a todas e quaisquer declarações que não promovem a pacificação social. A Salton a procura reafirmar com este acordo a sua não omissão diante deste doloroso fato, a sua demonstração genuína de amparo aos trabalhadores e à sociedade e o seu dever moral e legal em assumir uma postura mais diligente em relação aos seus prestadores de serviços”.
Aurora
Primeira versão
Na nota inicial a Aurora dizia que “se solidariza com os trabalhadores e reforça que não compactua com nenhum tipo de trabalho análogo ao de escravo.” “contrato tratava somente carga e descarga de uva.”
Segunda versão
“Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem. Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seríamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos.”
“Primeiramente, gostaríamos de apresentar nossas mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação. Ninguém mais do que eles trazem, nos ombros curados pelo Sol, o peso de uma prática intolerável, ontem, hoje e sempre. A testa daqueles que fazem o Brasil acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos. Repudiamos isso com todas as nossas forças.”
“Em seguida, sentimo-nos obrigados a estender essas desculpas ao povo brasileiro como um todo, não apenas como discurso, mas como prática. Já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los.”
Terceira versão (íntegra)
“A Vinícola Aurora segue atuando em diversas frentes na implementação das melhores práticas trabalhistas, sociais e, principalmente, humanas na empresa e em sua cadeia produtiva.
A assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público do Trabalho é mais um passo no sentido de reparar os danos aos trabalhadores temporários, bem como assegurar o comprometimento da empresa com medidas permanentes de promoção de condições dignas e seguras no trabalho.
À sociedade brasileira, a Aurora reafirma seu compromisso de aperfeiçoar cada vez mais os processos produtivos e mecanismos de fiscalização, garantindo aos trabalhadores, diretos e indiretos, uma jornada com segurança, salubridade, treinamento adequado e respeito“.
Cooperativa Garibaldi
Primeira versão
Em primeira nota disse que desconhecia a situação relatada e que havia encerrado o contrato com a terceira e que “seguia todas as exigências contidas na legislação vigente”. A cooperativa concluía que “reitera seu compromisso com o respeito aos direitos —tanto humanos quanto trabalhistas— e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos”.
Segunda versão
“Veementemente defensores do propósito de valorização das pessoas, repudiamos – agora e sempre – quaisquer práticas que afrontem os direitos e a dignidade humana, motivo pelo qual jamais permitimos ou compactuamos com tais situações. É imprescindível banir esse tipo de condução de nossa sociedade – e para exercemos tal papel de forma plena, assertiva e efetiva a partir da lamentável ocorrência desse episódio, estamos revisando as práticas internas para imediatamente”
Terceira versão (íntegra)
“A Cooperativa Vinícola Garibaldi, por meio da assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta proposto pelo Ministério Público do Trabalho, ocorrida nesta quinta-feira, 9 de março, reafirma seu compromisso, perante a sociedade brasileira e a cadeia vitivinícola, de atuar de forma efetiva no cumprimento e na exigência de práticas que respeitem os direitos humanos e trabalhistas.
Além de reforçar o repúdio ao episódio e a solidariedade para com as vítimas, a adesão ao documento é uma demonstração da nossa responsabilidade social e um movimento concreto para garantir que essa situação seja resolvida da melhor forma e, principalmente, jamais se repita.
Ressaltamos que já foram adotadas práticas internas anunciadas no início desta semana, que incluem o aprimoramento da política de contratação de serviços terceirizados em questões de integridade (compliance) e alterações no processo de seleção de prestadores de serviço, com auditorias sistêmicas na execução dos trabalhos. Também está em andamento a inclusão de cláusulas contratuais em respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Nossa trajetória é de muito trabalho e dedicação, construída por gerações de pequenos produtores, e seguiremos comprometidos com as melhores práticas, respeitando nossos compromissos com a sociedade“.
Uma associação inepta e um vereador xenófobo
Ajudou menos ainda o comunicado do CIC-BG (Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves) que responsabilizou os programas sociais de governo, como o Bolsa Família, para justificar o injustificável: a contratação deste serviço terceirizado sem checagem da empresa responsável. Há de constar nos anais da comunicação do pensamento retrógado o trecho que diz: “Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
E entra para o panteão dos personagens ridículos, representantes de uma mentalidade atrasada e preconceituosa que se espalhou pela classe política brasileira, o vereador de Caxias de Sul, Sandro Fantinel. Ele conseguiu a façanha de ser expulso do Patriotas após seu discurso xenofóbico que pretensamente defendia as vinícolas das acusações de trabalho escravo análogo à escravidão. Vale relembrar trechos do que Fantinel vomitou na Câmara, para nunca mais esquecer que este tipo de discurso e de político devem ser banidos da vida pública. Como conselho às vinícolas de sua região, recomendou: “Não contratem mais aquela gente lá de cima”, porque “Com os baianos, que a única cultura que têm é viver na praia tocando tambor, era normal que fosse ter esse tipo de problema”. O infame vereador, seguindo o roteiro dos falsos arrependidos, veio a público depois da repercussão do discurso pedir desculpas argumentado tratar-se de “lapso mental” e chorando lágrimas de crocodilo lamentava que até sua mulher estava ameaçando uma separação.
O papel da imprensa especializada
A grande mídia e imprensa profissional cobriram e cobrem o caso com o espaço que merece, com algumas raras exceções de sempre que buscaram tapar o sol com a peneira. Que fique claro, a culpa não é da imprensa. A denúncia do trabalho análogo ao escravo nas vinícolas, porém, colocou em xeque o jornalismo de serviços, em especial aquele especializado em vinhos, e todos os especialistas, palpiteiros e os novos influencers das redes que vivem de comentar a bebida e no geral elogiar as garrafas gentilmente oferecidas.
Aqui ficou mais escancarado a separação entre jornalismo de serviço sério e opinião patrocinada. Os profissionais éticos do meio se posicionaram sobre o tema e cobraram ações; aqueles que dependem do apoio financeiro para suas opiniões, no mínimo se omitiram, quando não relativizaram o ocorrido. Terceirizaram também a responsabilidade. É o pessoal do “veja bem…”. Afinal, são empresas sérias e conhecidas foi o principal argumento.
E aqui está um nó górdio do chamado jornalismo de serviços: a independência de opinião. Assim como críticos de livros e de cinema recebem as obras para resenhar e assistem projeções gratuitas para avaliar um filme os especialistas em vinho ou recebem garrafas para degustar ou são convidados para eventos e almoços para conhecer os rótulos. Criam-se assim afinidades com enólogos, produtores, importadores e assessores destas empresas.
O interesse dos produtores é tornar conhecido seu produto pelos canais de mídia e de preferência ganhar elogios para conquistar quem de fato interessa: o consumidor. O objetivo do crítico, especialista ou influencer é ter a oportunidade de expandir seu conhecimento sobre os rótulos, degustar os vinhos e assim ter subsídios para poder produzir seu conteúdo para quem de fato interessa: a audiência.
Mas um profissional de imprensa do vinho é aquele capaz de separar, digamos, a levedura do mosto, e noticiar com isenção e opinar com independência. Quem vive de vender sua opinião não faz parte deste contrato não escrito, mas essencial para a confiança da audiência. É outra coisa.
Se algum leitor atento ou mesmo curioso fizer uma busca aqui neste espaço do Blog do Vinho vai deparar com alguns posts sobre a Salton e seus vinhos, assim como de rótulos da Aurora. São empresas tradicionais e renomadas e que têm relações até pessoais com este redator, pessoas que pessoalmente gosto e mantenho contato. Isso não é um problema quando a isenção e independência não são afetados.
Minha avaliação sobre vinhos da Salton, Aurora e Garibaldi não mudaram, não vou reescrever minha opinião. A qualidade ou não de um vinho não pode estar associada a um erro – mesmo que desta envergadura – de condução. São as empresas, e sua gestão, que têm de ser responsabilizadas. Minha crítica ao envolvimento delas neste terrível episódio fica explícito aqui. Tanto na prática do trabalho terceiro sem fiscalização interna como na demora em assumir suas responsabilidades e adotar Termos de Ajuste de Condutas efetivos, como sugere a legislação.
O consumidor e a repercussão nas redes
As redes sociais funcionam com um termômetro viciado da sociedade, viciado pois só repercutem – e monetizam – quando medem a febre acima de 40 graus. Ou seja, tanto melhor se o assunto está queimando. Quando uma denúncia deste porte migra do noticiário para as redes, o potencial de dano é enorme. A rede dá voz tanto à indignação legítima da sociedade e do cidadão como escorrega para o embotamento da razão. É tanto um instrumento eficiente de pressão como uma máquina de destruição de reputações.
A divisão política encontrou espaço nesta discussão com os usuários apontando uma simpatia conhecida do setor com o candidato derrotado à presidência Jair Bolsonaro como um dos motivos de as vinícolas adotarem a prática do trabalho escravo via terceirizados. Aqui a defesa dos trabalhadores pegou um atalho para rivalidade política. O racismo e o radicalismo também vicejaram em comentários do outro lado, como no exemplo a seguir recolhido nas redes: “A Bahia tem alma da esquerda. A esquerda que escraviza a mente e alma das pessoas. E este bandido veio trazer a desgraça ao RS, onde o trabalho braçal é valorizado. Bandidos devem ser presos! Não queremos comunismo nem escravidão.”
O humor nadou de braçada. Há inúmeros memes e cartuns espalhados nas redes. O comediante Paulo Vieira, comparando sua carga de trabalho no programa de reality show Big Brother Brasil, na Rede Globo, soltou este veneno: “Daqui a pouco esse programa coloca umas uvas Salton para eu pisar aqui”.
Muitos perfis passaram a exigir o cancelamento das empresas, dos seus rótulos e mesmo do vinho nacional como um todo. E repete-se o erro de linchamento das empresas envolvidas com a Lava-Jato, que foram condenadas e canceladas em praça pública. Os negócios e toda cadeia produtiva e parte dos empregos gerados viraram pó.
A cultura do cancelamento é uma espécie de equivalente digital do conceito freudiano de Thanatos, a pulsão que leva à segregação de tudo o que é vivo, à destruição, à morte. O cancelamento é um comportamento infantil. Não negocia, elimina o problema decretando seu fim. Se toda empresa que cometer atos ilegais for cancelada, no limite andaremos nus e beberemos água de bica!
Já o boicote a uma marca é uma reação legítima do consumidor que não se sente representado pelo produto ou mesmo não concorda com as práticas e políticas de uma determinada empresa. A adesão a este tipo de boicote costuma ter maior impacto inicial e depois arrefecer. Mas no caso do boicote sugerido nas redes aos rótulos da Salton, Garibaldi e Aurora, cabe às empresas recuperar a confiança destes consumidores com práticas reais e transparentes de ações sociais, ambientais e de governança (conhecido pela sigla ESG).
Um bom início foi a adesão da Salton ao pacto contra o trabalho escravo. A assintura da TAC com o MPT no dia 9 de março, o pagamento dos 7 milhões a título de indenização e o compromisso das três vinícolas de obedecer as 21 obrigações com objetivos de aperfeiçoar o processo de tomada de serviços, com a fiscalização das condições de trabalho e direitos de trabalhadores próprios e terceirizados e impedir que novos casos semelhantes se repitam no futuro são compromissos públicos de mudanças com o Estado e a sociedade. Suficiente? Cedo para avaliar, mas é um caminho mais reto que o adotado inicialmente. Uma comunicação eficiente e transparente sempre ajudam. O caminho é longo, mas o delito também foi grave. A repercussão, enorme.
(post atualizado no dia 10 de março, após assinatura do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com as Vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton com o Ministério Público do Trabalho – MPT)
obrigado