A África do Sul é uma região vinícola com mais de 350 anos. Os vinhedos foram plantados pelas mãos dos colonizadores holandeses com o auxílio luxuoso de um punhado de franceses. Apesar da história antiga, a África do Sul é considerada parte do time do Novo Mundo do vinho. Contraditório? Não. A indústria vitivinicultura só retomou a importância e a busca pela qualidade a partir de 1994. Não por coincidência, com o fim do ignominioso regime segregacionista do apartheid. Talvez mais correto seria ser chamar a África do Sul de Velho Novo Mundo do vinho.
“O estilo sul-africano está entre o moderno vinho do novo mundo, como o australiano, gratificante e imediato, e o clássico vinho do velho mundo europeu, mais austero, complexo, com capacidade de envelhecimento na garrafa”, definiu John Platter em entrevista a este jornalista, há muitos anos, lá em 2004. Platter é autor do guia John Platter’s South African Wines, referência para quem quer conhecer o vinho sul-africano.
A África do Sul também é reconhecida nos cursos e guias de vinho por ostentar uma uva-símbolo, criada e cultivada por lá: a pinotage. E com isso se tornou o vinho que sempre vem à lembrança quando o tema é vinhos deste país. E se você duvidar deste colunista pode consultar o ChatGPT, o demiurgo dos nossos tempos. Ele vai confirmar:
Pergunta: Qual a principal uva vinífera da África do Sul?
ChatGPT: A uva vinífera mais cultivada e mais conhecida da África do Sul é a uva tinta Pinotage, que é considerada uma uva emblemática do país. A Pinotage foi criada na África do Sul em 1925 através do cruzamento da uva Pinot Noir e da uva Cinsault (conhecida na África do Sul como “Hermitage”).
A uva Pinotage é conhecida por seus sabores distintos de frutas vermelhas escuras, especiarias e notas de fumaça. É frequentemente utilizada em vinhos tintos sul-africanos, tanto em cortes quanto em vinhos varietais, e pode produzir vinhos de alta qualidade e longa guarda.
Mas… no mundo real a uva nem é sempre apreciada pelos especialistas. Um fenômeno semelhante ao que ocorre à carmenère chilena; vendida como uva exclusiva, os críticos no geral torcem o nariz e fazem careta. A fama faz sentido pois muitos vinhos elaborados com esta uva eram muito rústicos, às vezes lembrando borracha queimada. Deixemos de lado o ChatGPT e vamos recorrer novamente a John Platter, na mesma entrevista, que é quem tem conhecimento e curadoria para falar sobre os vinhos sul-africanos. Vale apenas alertar que a qualidade da pinotage evoluiu entre 2004 e 2023.
“A pinotage é reconhecida como a uva que só nós temos. É uma questão de orgulho nacional. Mas se podemos dizer que a Argentina é malbec, a África do Sul não é pinotage”, definiu Platter. E conclui: “É apenas uma entre as muitas variedades que produzimos, e uma variedade muito controversa, que gera uvas de má qualidade se não forem bem cuidadas, pois têm uma certa rusticidade. Por isso, temos produtores apaixonados e outros que odeiam esta cepa. Quando misturada a outras uvas, o que chamamos de Cape Blend, funciona melhor. Nós trabalhamos muito bem com outras uvas; fazemos shiraz brilhantes – temos um clima muito similar (ensolarado, quente) ao Vale do Rhone, na França, onde a fruta se dá melhor -, muito bons pinot noir, cabernet sauvignon, sauvignon blanc e chardonnay. O problema é que todo mundo tem shiraz e cabernet sauvignon e acaba-se produzindo vinhos muito parecidos”.
A participação da África do Sul na pizza do gráfico de importação de vinhos no Brasil é irrisória. Mas como sempre se reforça aqui neste espaço, o grande barato do vinho é a possibilidade de conhecer e provar vinhos de diversos lugares, uvas, estilos. No Brasil é possível encontrar até que uma boa variedade de rótulos deste Novo Velho Mundo, cada qual puxando para um estilo e perfil de público. Desde rótulos de entrada como Obikwa, importado pela Interfood, até vinhos de bom custo benefício, como o Porcupine Rigde Syrah, elaborado por Boekenhoutskloof e trazido pela Mistral ou ainda garrafas de alta gama, a exemplo do Klein Constantia Estate Chardonnay, no catálogo da World Wine e o Stellenrust Chenin Blanc ’55, vendido pala Wine Brands.
Os vinhos da DGB
O tema África do Sul retorna a este blog pois participei de uma degustação de vinhos promovida pela DGB, um hub de produção e distribuição de vinhos sul-africanos. Seu modelo de negócio é arrendar empresas e vinícolas com bom potencial e cuidar de todo ciclo de produção, comercialização e marketing, no geral mantendo os enólogos e antigos proprietários à frente do negócio. Atualmente possuem 18 vinícolas em seu portfolio e exportam para 87 países. A empresa foi agraciada recentemente como o título de “Best South African Producer” de 2022 pela Mundus Vini International Awards, premiação internacional sediada na Alemanha. Com assessoria do português-sul-africano-brasileiro João Clemente, proprietário da loja de vinhos Vino e Sapore, atravessaram o Atlântico para apresentar armas. Na mala trouxeram rótulos de alta gama ainda sem importadores no Brasil que foram provados por um punhado de jornalistas e colunistas de vinho.
Foram quatro brancos: sauvignon blanc, chenin blanc, sémillon e chardonnay. E quatro tintos: pinot noir, shiraz, o inevitável pinotage e um blend com cabernet sauvignon, shiraz, merlot, cabernet franc, malbec e petit verdot.
E aqui uma unanimidade entre os provadores. Os brancos superaram os tintos em elegância, persistência e qualidade. Destaques nas minhas taças.
- Leia também: O gosto dos críticos de vinho combina com o seu?
Brancos
Fryer’s Cove – Bamboes Bay Sauvigon Blanc 2022. Um exemplo de Novo Mundo, inspirado no estilo da Nova Zelândia, com aquela acidez marcante e gratificante e com aromas sutis, um toque de salinidade e mineralidade. Mas um Novo Mundo que não abusa do perfil aromático de maracujá, cítricos exagerados e comuns nos sauvignon blancs da América do Sul, por exemplo. São os vinhedos da África do Sul mais próximos do mar, lambidos por fortes ventos da costa e cobertos por uma névoa continua que deposita grande quantidade de sal sobre os vinhedos, reffletido alias no fim de boca do vinho. (A foto que abre este post é da Fryer’s Cove – Bamboes Bay, localizado em Cape West Cost)
Old Road Wine – Stone Trail Chenin Blanc 2019. A chein blanc foi trazida por aqueles franceses do primeiro parágrafo e se deu muito bem no país. Vinhedos antigos desta belezura aqui são de 1937. Apresentou uma boa fruta, toques de peras e final persistente. O caldo envelhece por 9 meses em barricas antigas de carvalho francês, o que aporta uma boa estrutura em boca. Tem potencial de um branco de guarda, o que aponta para um estilo mais Velho Mundo. A safra de 2020 conquistou 5 estrelas no já citado Guia de John Platter de 2022.
Tintos
Old Road Wine – Pepper Wind Syrah 2020. Um syrah de respeito, complexo, intenso, com sua tipicidade de frutas vermelhas condimentadas com especiarias. Dez meses de barricas usadas francesas de segundo e terceiro uso que amaciam o caldo sem atropelar a uva. Bom corpo, belo final. Talvez uma síntese de Velho Novo Mundo.
E para surpresa e quebra de (pre)conceitos dos degustadores, o que me incluo, apresento o Bellingham – Bernard Series Bush Vine Pinotage 2019. Agradou bastante. Talvez menos que o Boschendal Nicolas 2021, a salada de frutas de uvas tintas citada acima, mais ao estilo Velho Mundo, que tem estilo marcado, boa fruta na boca, aquela mistura de frutas vermelhas manjadas com toques de chocolate e potencial de guarda. Seria quase um corte bordalês, não fosse o shiraz de penetra no blend. Mas o Bush Vine Pinotage 2019 merece registro e pompa. Prova que o trabalho cuidadoso no campo, com uvas selecionadas de dois vinhedos diferentes (Darling e Cape Town) com influência do Oceano Atlântico, aliado a uma vinificação manual e com pouquíssima intervenção, pode resultar num pinotage que rompe com o histórico dos rótulos pesados do passado. Traz um nariz agradável de cerejas, flores, um caldo concentrado e balanceado. Bom de beber. E de reavaliar preconceitos.
A qualidade está na taça. A pinot noir, por exemplo, que eu tinha mais expectativas achei bem diluída e tímida. Lição de casa da prova dos vinhos da ÁFrica do Sul. Vale provar mais bons pinotages, com menos preconceito na alminha. Sem cair, no entanto, na armadilha do ChatGPT e achar que a uva representa o que há de melhor na África do Sul. Pelo que provamos na amostra trazida pela DGB, há outras possibilidades mais interessantes.
Não são rótulos baratos. Na realidade, a seleção foi uma amostra para exibir qualidade e terroir diversos (mais ou menos próximos da Costa, etc). A intenção era mesmo de impressionar e buscar visibilidade. E assim garantir espaço para importar também os rótulos mais baratos destas vinícolas. Este é o jogo. Para garantir espaço em importadoras é preciso ser visto e comentado antes. São rótulos que certamente têm seu público no Brasil. Para as importadoras significa diversificação de portfólio, para os consumidores, variedade na sua adega. E assim vamos.