Recebi um convite para um jantar no restaurante Friccò, em São Paulo, onde todos os pratos e entradas seriam acompanhados de vinhos do produtor italiano Alberto Medici, da vinícola Medici Ermete. Poderia ser mais um desses eventos que juntam gastronomia bacana com tintos e espumantes de alto coturno se não fosse um detalhe: o produtor em questão elabora apenas Lambruscos, tinto levemente frisante que a maioria dos especialistas e bebedores de vinho torce o nariz – e se tiver em casa reserva para a visita eventual do cunhado.
Preconceito? Não é por acaso. 60% dos vinhos italianos importados no Brasil são do tipo Lambrusco de produção massificada (em geral grandes cooperativas) e qualidade duvidosa. Duvidosa para quem, cara-pálida? Exatamente para aqueles que apreciam um fermentado com aquela combinação de acidez, corpo, taninos, fruta e intensidade que resultam em bons vinhos. Os Lambruscos do tipo, digamos, popular fazem sucesso por uma conjunção de fatores entre eles o baixo preço, o toque frisante, o baixo teor alcóolico e principalmente pelo açúcar residual que torna a bebida doce e faz a alegria dos brindes dos casamentos, servidos gelados em taças de champanhe.
- Leia também: Um tinto e um branco com sotaque italiano
A diferença não está apenas nos detalhes, em muitos casos é o essencial que define um vinho. Medici Ermete elabora Lambruscos de grande qualidade na região da Emilia-Romana, e o chef do Friccò, Sauro Scarabotta, nascido na região da Úmbria, produz finos embutidos artesanais curtidos em seu restaurante. O que me atraiu a este encontro foi a oportunidade de rever preconceitos – eu também desgosto, para ser educado, de Lambruscos no geral – e provar um rótulo de Lambrusco com tradição e certificado de origem DOC (Denominazione di Origine Controllata).
Mas Lambrusco é um tipo vinho ou de uva?
Momento Wikipedia! Lambrusco é um vinho frisante (ligeiramente borbulhante, resultado da fermentação na garrafa, os bons), com boa acidez, baixo teor alcóolico e um toque doce que varia de acordo com sua qualidade. Ele é produzido na região norte da Itália, na Emilia-Romana, que se encontra no centro de um triângulo onde nas pontas se destacam as regiões vinícolas mais famosas da Toscana, Veneto e Piemonte.
- Leia também: Sob o sol da Toscana, uma visita à vinícola Antinori
O Lambrusco é essencialmente um vinho tinto, mas pode ser encontrado nas versões branco (no geral não são bons) e rosé. Além de produzir espumantes interessantes. Não é um vinho de guarda, mas para ser bebido ainda jovem. A região da Emilia-Romana é reconhecida também por seus embutidos, como o caso do presunto di Parma. A combinação de um com o outro é espetacular. Parma é um dos cartões-postais do roteiro da boa mesa da Itália. Se um dia tiver a oportunidade, não deixe de ir – e ficar mais de um dia.
Lambrusco também é o nome da variedade de uva cultivada nas planícies da Emilia-Romana, entre Modena e Parma. Na verdade, é uma família de uvas. As subvariedades mais conceituadas são: Lambrusco di Sorbara, Lambrusco di Grasparossa. Lambrusco Marani e Lambrusco Salamino.
O dia em que provei um Lambrusco. E gostei
Foram dois os destaques, um espumante brut rosé e um tinto seco. Se confesso que nunca havia bebido um bom Lambrusco – o que mostra que este colunista compartilha sua ignorância em público sem ficar vermelho -, muitos menos havia provado um espumante desta uva. Foram duas boas surpresas.
- Leia também: Vinhos italianos da Sicilia aos pés do vulcão Etna
Unique Spumante Rosé Brut 2012
Medici Ermete/Tenuta Rampata
Uva: Lambrusco Marani
Importador: Decanter
Preço: R$ 153,00
É um espumante elaborado pelo método clássico (segunda fermentação na garrafa, 30 meses de contato com as leveduras). O que significa que as bolhinhas são mais presentes e longas e não apenas aquele toque meio de agulha que caracteriza o frisante. Um frisante tem de 2 a 3 atmosferas por pressão, o que significa que a pressão no interior da garrafa é duas ou três vezes maior do que fora; um espumante tem 6. Por isso faz ‘Pow”, quando aberto! Tem boa estrutura, cor rosada bem delicada, frutas frescas e final refrescante. Às cegas diria que é um Lambrusco? Não. Apenas imaginaria um espumante de boa qualidade. O preço não é lá convidativo comparado a um espumante de gabarito similar. Mas vale a experiência; o grande barato do vinho é provar diferentes rótulos de diferentes lugares.
Arte e Concerto
Reggiano Lambrusco DOC
Medici Ermete/Tenuta Rampata
Uva: Lambrusco Salamino
Importador: Decanter
Preço: R$ 95,00
Este foi o Lambrusco que fez rever meus (pre)conceitos. Trata-se do primeiro Lambrusco de vinhedos únicos do mercado (manja quando colocam no rótulo a inscrição single vineyard? É isso, sinônimo de origem e qualidade, significa um vinhedo selecionado). O produtor Alberto Medici, representante da quarta geração da família Medici à frente da vinícola, mostra com orgulho uma foto de uma garrafa de Concerto ao lado de um Don Pérignon nas prateleiras da prestigiada loja Harrods, em Londres. “É um Lambrusco cru!”, argumenta, usando um termo francês que traduz qualidade a um vinho. “Há sete anos o Concerto conquista os tre bicchieri, cotação máxima do Guia Italiano Gambero Rosso”, conta satisfeito. São produzidas 150.000 garrafas desta belezinha. As uvas são de plantas de baixa produção, outro sinônimo de cuidado e seleção, e o suco fica de 5 a 6 dias em contato com as cascas para maior extração de cor e sabor. As bolinhas são muito finas, pouco perceptíveis. No aroma aparecem frutas vermelhas frescas, um pouco de flor. Na boca é um vinho seco, corpo médio, muito frutado, tem uma doçura na entrada que é cortada pela acidez gostosa e embalada pelo toque de agulha que provoca um final persistente/refrescante. O teor alcóolico de 11,5% é perfeito para este tipo de bebida e convida um refil na taça.
Lambrusco & presunto e mortadela
Os embutidos do chef Sauro – mortadelas, presuntos – e também uma lasanha servida como prato principal foram parceiros ideais do Lambrusco Concerto, seguindo a lógica da região de origem do vinho. O Lambrusco deve ser servido numa temperatura de 14º a 15º, bem fresco, mas não gelado. A gordura dos embutidos baila entre um gole e outro deste caldo de muita personalidade. Portanto, se quiser uma combinação gostosa e sem erro de mortadela e vinho, vá de Lambrusco mais seco de boa cepa. Há quem recomende Lambrusco para acompanhar a brasileiríssima feijoada pelos mesmos motivos: acidez corta a gordura. Eu prefiro uma caipirinha, na boa.
Segundo Alberto Medici, toda produção é comercializada dois meses antes do lançamento da safra seguinte. Provoco Alberto. “E como vencer a má fama dos Lambruscos em todo o mundo?”. Ele abre um sorriso e exibe a taça de um Concerto cheia: “Assim, promovendo encontros com jornalistas, formadores de opinião e apreciadores e mostrando nossa qualidade e como o vinho combina bem com um determinado tipo de comida”. Mas Alberto não tem do que reclamar. A Ermete Medici exporta 70% da produção para 70 países. Estados Unidos e Japão são os principais mercados. E você, topas provar?
Publicado originalmente em agosto de 2016