Você toma vinho argentino, não? Deve tomar. 20,21% do vinho importado que entra no Brasil vem do nosso vizinho mais ao sul da América de mesma latitude. No copo, pelo menos, nos entendemos. Mas será que você conhece mesmo o vinho argentino? Você já ouviu falar das regiões de Cafayate, Salta, Patagônia, Vale de Uco, Luján de Cuyo, San Juan ou apenas ouviu falar de Mendoza. Ou nem isso?
A maioria das garrafas que chegam ao Brasil são provenientes da região de Mendoza e San Juan, responsáveis por 90% da produção do país (201,441 hectares de vinhedos, para ser mais preciso). Mas há duas outras regiões que produzem tintos e brancos que merecem ser conhecidas: a distante Patagônia, mais ao sul, e a quase boliviana Salta/Cafayate (pronúncia-se Cafajate), localizada mais ao norte. E você pode se perguntar. E qual a importância deste momento Wikipedia para eu continuar desfrutando meu vinhozinho argentino?
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Bom, conhecimento não ocupa espaço, como dizia minha mãe, e o pai dela. E conhecimento alarga nossa visão das coisas e nos amplia a possibilidade de conhecer novos vinhos da Argentina e talvez entender os já conhecidos. Há uma geração de apreciadores de vinho que se iniciou com tintos argentinos e chilenos, e muitos consumidores que apenas bebem vinhos importados destes países. As razões são conhecidas. O principal argumento é o preço, obtido graças ao acordo tarifário do Mercosul que dá uma livrada na cara da montanha de impostos que incidem sobre a bebida importada. O outro argumento é que o vinho argentino caiu no gosto do brasileiro.
Eu achei que conhecia bastante vinho argentino, afinal sou de uma geração que se iniciou com os mesmos tintos argentinos e chilenos que o resto dos brasileiros apreciam. Mas a visita que fiz recentemente à Argentina mostrou na prática o que parece óbvio. As diversas regiões têm características diferentes que agregam sabores específicos para os vinhos produzidos. Afinal, são quilômetros que separam os terrenos, as diferentes altitudes, os climas e as diversas composições do solo. E mesmo dentro das regiões há estilos diferentes. O jovem enólogo Sebastián Zuccardi é um defensor do terroir argentino e de como ele influencia o sabor de um vinho. Para ele, mais importante que a varietal (tipo de uva) é a zona em que ele é cultivado. “A Argentina precisa comunicar o lugar”, defende. Mas nós costumamos uniformizar: é um malbec argentino. Esta é uma lição da viagem na taça. São diferentes.
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Isso não significa que todo vinho argentino é bom, que alguns vícios do passado estejam totalmente ultrapassados (como vinhos carregados de madeira, desiquilibrados ou mesmo maquiados para atender expectativas do mercado internacional) ou que não existam verdadeiras zurrapas de preço baixo que são empurradas para o mercado brasileiro. Por isso mesmo um pouco mais de conhecimento ajuda na escolha da garrafa. A visita mostrou um cenário de constante evolução e profissionalismo da indústria, a riqueza das diversas regiões e uma boa estrutura ao enoturismo. Contra as ideias preconcebidas – devido ao sucesso de vendas o tinto argentino merece com frequência um ar de desdém por parte dos especialistas e crítica – nada melhor que o conhecimento.
Argentina, um raio-X
A Argentina tem um consumo per capita de 25 litros por ano, já foi de 90 litros, imagine só. Para efeito de comparação, no Brasil são 2,0 litros per capita. O país consome cerca de 70% de sua produção e exporta entre 25 a 30%. É o oitavo maior produtor do mundo e também o oitavo país em superfície cultivada (mais de 217.750 hectares). Algumas características comuns influenciam e diferenciam a qualidade dos vinhos:
– altitude elevada dos vinhedos
– baixa fertilidade do solo
– baixo índice pluviométrico
– clima continental (sem influência do mar, do contrário do Chile, por exemplo)
– pureza da água (abastecida pela Cordilheira dos Andes)
– e até uma cultuta interna do vinho, que mantém um mercado interno aquecido.
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As variedades tintas representam 52,31% da produção e as brancas 20,89%. São 1301 bodegas fermentando uva e engarrafando vinhos.
Principais uvas por volume de cultivo:
Tintas
Malbec 31,71%
Bonarda 17,42%
CabernetSauvignon 15,15%
Syrah 12,12%
Merlot 5,82%
Tempranillo 5,85%
Sangiovese 1,83%
Pinot Noir 1,76%
Outras 6,53%
Brancas
Pedro Gimenez 28,04%
Torrontés Riojano 18, 36%
Chardonnay 15,16%
Chenin 5, 68%
Torrontés Sanjuanino 4,78%
Sauvigon Blanc 5,39%
Semillon 1,97%
Vioginer 0,9%
Outras 18,70%
Regiões – Mendoza
Mendoza é uma região que vive da fama de seus vinhedos. Diga lá que cidade do mundo tem vinhedos plantados no estacionamento do aeroporto? O município é tomado por ruas largas e arborizadas e grandes praças. 80% da produção de vinhos da Argentina está concentrada em seus vales, limítrofes à Cordilheira dos Andes. Toda a região que produz vinho é donominada de Cuyo, – engloba Mendoza, San Juan e La Rioja. Cuyo significa, no idioma Huarpe Mikayac. país dos desertos (eu tenho uma tese, estas línguas indígenas tanto na Argentina como no Chile só servem para nomear regiões e rótulos de vinho, dando uma pegada de origem e mistério na coisa toda). E a terra é árida mesmo, o que é bom para o vinhedo, irrigado pela água que desce das geleiras, que é fortemente controlada pelo governo. A propósito, o ideal para a planta, segundo nos explicou Carlos Tizio, gerente geral do Clos de Los Siete, não é o estresse pela escassez de água, mas pelo déficit. Traduzindo, não dê 100% da água que a planta precisa, mas uns 50 a 60%, assim ela busca os demais nutrientes no solo, equilibra seu crescimento e mantém a qualidade das uvas produzidas. Os vinhedos estão em altitudes médias de 1.000 metros acima do nível do mar.
Quase todas as variedades de uva são plantadas aqui. Mendoza ainda se divide em cinco zonas: Norte, Leste, Centro, Sul e Vale de Uco. Luján de Cuyo, localizada no Centro, é conhecida como a “La Tierra del Malbec” e junto com Maipú é a região vitivinícola mais tradicional de Mendoza. São tintos mais estruturados, com frutas bem maduras, floral, com bom volume em boca e taninos macios. Mas também há produção de bons bonardas e de cabernets sauvignon muito interessantes. O corte bordalês costuma ser usado nos rótulos top de gama. Curioso. Mesmo as vinícolas com grande expressão em malbec quando vão elaborar o seu vinho ícone costumam preferir vinhos de corte. Perguntei a razão para um enólogo que preferiu responder sem ser identificado: “O vinho de corte é um trabalho do enólogo, que pode escolher as melhores variedades produzidas naquele ano em seu vinhedo”. Até aí nenhuma novidade. Mas por que não a malbec 100%, insisti? “Talvez por que por que a malbec não seja ‘a melhor uva’ argentina, mas sim a que melhor representa o país”. Claro que há rótulos de altíssima gama apenas da varietal malbec, e com exclentes resultados, mas é mais comum encontrar os ícones com a malbec acompanhada de cabernet sauvignon, merlot, cabernet franc…
As vinícolas mais conhecidas, aquelas que você esbarra no supermercado e na carta dos restaurantes, estão espalhadas pela região. Nomes como Achaval Ferrer, Terrazas, Finca Flichman, Luigi Bosca, Pascual Toso, Lagarde, Salentein, Catena Zapata, Alta Vista, Alto Las Hormigas, Septima, Argento, Escoruhiela Gastón, Clos de los 7, Doña Paula, Dominio del Plata, La Celia, Kaiken, Chamiza, Rutinni, Nieto Senetiner, Navarro Correas, Norton, O Fornier, Pulenta, Ruca Malen, Trapiche, Trivento, Zuccardi. Além desses as menos conhecidas, mas de excelente qualidade, como DiamAndes, Ricitteli, Casarena, Finca El Origen, Funckenhausen, Bodega Vistalba, Otaviano, Renacer, Serrera Wines, Durigutti e Hacienda del Plata, algumas sem importador no Brasil.
Cuyo é a maior região vitivinícola da América do Sul. Apenas para ilustrar o gigantismo da operação: a Santa Ana, pertencente ao grupo PeñaFlor, conta com mais de 50 enólogos em sua equipe, 1500 rótulos diferentes e produz mais de 150 milhões de litros de vinho por ano – 6 milhões de caixas apenas do rótulo Santa Ana. Um assombro. Aqui etambém stão concentrados grandes investimentos internacionais – é onde Michel Rolland tem seus vinhedos junto com outros seis proprietários franceses, no projeto Clos de los 7.
Regiões – Salta/Cafayate
Para chegar até a região de Cafayate, onde está concentrada 70% da producão local de vinhos (pouco mais de 2.500 hectares), o viajante pega a sinuosa Ruta 68, passando pela deslumbrante Reserva Natural de Quebrada de las Conchas. É nada mais do que lindo! A natureza esculpiu lentamente, em milhões de anos, formas que lembram bichos, catedrais, castelos e barcos entre as montanhas de rochas que dominam o cenário. As diferentes formações geológicas tingem de verde, marrom, vermelho, branco e suas nuances multicoloridas as montanhas de pedras. É uma prova inquestionável de que o tempo da terra é diferente do tempo dos homens.
Este cenário antecede a visita aos vinhedos de altitude da região de Cafayate. As parreiras estão localizadas entre 1.500 e 3.000 metros sobre o nível do mar (a região vitivinícola mais alta do mundo). A chuva é rara, 200 milímetros por ano. A colheita na região é realizada uma semana antes do que em Mendoza. Os vinhos têm uma ótima acidez e são mais amigáveis. A branca torrontés produz vinhos mais sutis e menos exibidos na região. Os tintos são mais intensos pois o sol, mais próximo pela altitude, faz com que as frutas engrossem as cascas para proteger as sementes, e como se sabe é nas cascas que se concentram aromas, cor e outros elementos dos tintos. Além do malbec vale conhecer seus cabernet sauvignon e cabernet franc. Uma curiosidade para enófilos de carterinha: na Finca de La Merced, na Bodega Etchart, parreiras de 150 anos ainda produzem uvas da variedade criolla e torrontés. Principais bodegas: Colomé, El Esteco, Amalaya, El Porvenir, Etchart, Michel Torino, Tukma, San Pedro de Yacochuya.
Regiões – Patagônia
É inacreditável imaginar que no meio daquele deserto cresçam plantas que resultem vinhos tão elegantes. Se Salta possui os vinhedos mais altos do mundo, a Patagônia exibe os vinhedos mais ao sul do planeta, no paralelo 39. Ao contrário das regiões de Salta e Mendoza, seus vinhedos estão entre 300 e 500 metros do nível do mar, proporcionando uma maturação mais prolongada das uvas. Em termos quantitativos, é quase um dedal de vinho comparado às outras regiões. A Patagônia é responsável apenas por 1,69% da area vitivinícola da Argentina.
Por conta de suas condicões climáticas, dos ventos frequentes, baixa umidade e ampla diferença térmica entre dia e noite (algo como 20 graus) na época da maturação das uvas, o nível de acidez que se obtém é alto, com permite um bom potencial de guarda. O baixo rendimento dos cachos de uva impõe a produção de vinhos de qualidade. Inicialmente a região ficou marcada pelos pinot noir especiais, muito elegantes, de ótimo final de boca (o exemplo mais conhecido é o Chacra) e por um sauvignon blanc delicado. Mas há um enorme potencial também para um malbec mais fino, sem tanta extração, mais sutil nos aromas e paladar e com uma fruta que enche a boca. As principais vinícolas são Bodega del Desierto, Familia Schroeder, Humberto Canale, Bodega del Fin del Mundo, NQN, Noemia, Bodegas Chacra
Declaração: Este colunista esteve na Argentina a convite da Wines of Argentina, onde provou 228 vinhos, visitou várias vinícolas e teve contato com dezenas de produtores. Desta boca-livre resultou o texto produzidos neste post sobre os vinhos argentinos.
Publicado originalmente em fevereiro de 2014
Gostei muito do artigo. Bastante esclarecedor.
Caro Francisco Falci, grato pela sua leitura e pelo comentário. Apareça sempre. Estou produzindo um post com os rótulos que mais surpreenderam nesta visita.Espero que aprecie. abraços
Gostei do artigo, vou aguardar o artigo com os rótulos, pois quando abri achei que iria ter indicações.
Sou apreciador dos vinhos chilenos Tarapaca, Concha y Toro, San José Apalta dentre outros.
Abraços.
Conheci algumas vinicolas dessa regiao, recomendo todoss apreciadores de bons vinhos a visita-la. Alem dos bons vinhos, uma paisagem deslumbrante. Quanto a reportagem, excelente mas, vamos divulgar o que temos porque, nossos vinhos sao de boa qualifdade, tambem.
Gostei do artigo. Didático e elegante. Recomendaria em Mendoza Domaine Saint Diego, de Ángel Mendoza, a Carmelo Patti, um maestro em elaborar vinhos com perfeccionismo e a Fabre Montmayour, que possui vinhedos em Mendoza e na Patagônia e que pertencem a um francês que investiu na Argentina desde o início dos anos 90.
Parabéns Beto.
Seu texto esta excelente. Apenas julguei que a fim do texto você indicaria quais os vinhos de sua preferência, não a vinicola,mas, a uva.
Sou apreciador dos vinhos argentinos e chilenos. Mas preferencialmente os argentinos.
E, meus preferidos são: malbec, syrah e um espanhol tempranillo.
Abraço.
Prezado,
Sou um apreciador de vinhos Argentinos e gostei muito da matéria!
Essa região de Mendoza, parece um lugar muito bonito, que ainda espero conhecer e visitar as vinícolas, principalmente Catena Zapata, Alta Vista, etc.
abraços.