Qual o gosto do tempo? Depende, eu arriscaria. Há o tempo pessoal e o histórico. No clássico Em Busca de um Tempo Perdido, de Marcel Proust, as já manjadas madeleines remetem o narrador principal a uma lembrança de infância.
É a medida do tempo pessoal que acessa o gatilho que remete ao título do livro e que, em nossas vidas mundanas, tem o potencial de reviver memórias vividas. Diante de um vinho do Porto de 1888, o tempo é histórico – não há uma ligação pessoal -, é preciso então afinar os sensores gustativos para desfrutar com atenção a bebida no presente. Provar um líquido elaborado há 132 anos é, antes de mais nada, um privilégio. Mas, acima de tudo, é um ato de respeito ao passado. É o tema deste post.
300 anos de Vallado, 132 de vinho
A Quinta do Vallado, encravada no inebriante cenário do Douro, às margens do rio Corgo, comemorou 300 anos em 2016. Está associada à lendária Dona Antónia Adelaide Ferreira, celebrada no pórtico de entrada da propriedade.
Para celebrar a data a Quinta produziu 300 garrafas de 750 ml do Quinta do Vallado ABF 1888, um vinho do Porto especialíssimo que vem acompanhado de um decanter de cristal produzido artesanalmente. O decanter é uma réplica daquele usado em 1830 por Antonio Bernardo Ferreira, que adquiriu o Vallado em 1818, em recepção ao príncipe alemão Frederico De Hesse. Todo este mimo é devidamente embalado numa caixa especial de madeira entalhada em Nogueira ao preço de 3.200 euros. Curtiu? Tem o numerário disponível? Pode ser seu, basta encomendar seu estojo pela importadora PPS, responsável pelos tintos, brancos e portos do Vallado no Brasil.
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Qual o gosto do tempo?
João Ferreira, o Ferreira da vez que comanda o Vallado, esteve no Brasil com uma garrafa do ABF debaixo do braço. João Ferreira é parte do grupo que ficou conhecido como Douro Boys, que reúne 5 produtores da região com vinhos de qualidade e grande potencial. A garrafa, acomodada em seu estojo, era de número 132 – para os crédulos e chegados numa mensagem esotérica, tinha um recado do tempo aí para um vinho de 132 anos. Cercado de mesuras rompeu o lacre de cera vermelha que protege a rolha, destampou a cápsula do tempo e verteu lentamente o caldo untuoso no decanter descrito acima. Acompanhe o momento no video abaixo.
Nós vivemos no tempo da velocidade, do instantâneo. Um vinho de 132 anos é o oposto disso. Exige atenção para curtir os aromas, os sabores e estimular as sinapses que possa provocar. Mas estamos em 2017, a era do imediatismo. Enquanto João Ferreira derramava o líquido viscoso no decanter a cena era compartilhada em tempo real nas redes sociais dos mais afoitos.
É o paradoxo no nosso tempo: não existe intervalo entre um evento e sua recepção, entre o fato, a imagem e a difusão da imagem. Se a ação tem distribuição online, sua interpretação, no entanto, exige um pouco mais que o tempo real nas redes.
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Os descritivos de um Porto mais antigo são sempre superlativos: a cor é acobreada, os aromas oníricos e evoluídos. O líquido, untuoso. O doce e o álcool na boca são dionisíacos e a acidez presente confere a vivacidade que mantém o conjunto harmônico e a complexidade exuberante. É estupendo!
O gosto do tempo escorre como um licor e invade as narinas com o impacto de uma bomba que libera aromas aprisionados de frutas secas, em especial figos, mel, especiarias, licores, madeira. Na boca, confirma o doce esperado, combinado com uma acidez incrível para um vinho desta idade e transforma a experiência em uma sensação de riqueza, potência e frescor que culmina num fim de boca de vários segundos. A mágica se repete e acrescenta novas camadas a cada gole, pequenos goles, na verdade, que tentam adiar o inevitável fim, que ainda revela os prazeres do fundo da taça.
Acabou, só que não
O fundo de copo é uma das mais agradáveis sensações que um vinho de excelência pode proporcionar. É aquele resto de vinho que sobra no fundo da taça e fica suspenso no ar, inunda o nariz com os mesmos registros de notas doces e amendoadas descritas anteriormente, potencializadas pela recente experiência, e que consegue por alguns segundos reproduzir o prazer da bebida provada. É um assombro, é um barato, é o tipo de droga que eu me vicio.
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Soma-se ao deleitar-se a constatação de quão distante está a elaboração do caldo e o tempo que ele percorreu para alcançar o destino de todo vinho, que é ser bebido. Apenas para colocar no contexto histórico, 1888 é o ano da assinatura da Lei Áurea, que decretou oficialmente o fim da escravidão no Brasil. 1888 também é o ano de publicação de Memorial de Aires de Machado de Assis e Os Maias, de Eça de Queiroz, autor que incluía sempre um vinho do porto entre seus personagens. E este vinho, de 1888, sobreviveu até nós, como os marcos históricos e as obras literárias
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História de um Porto
O que tem passado, tem história. E qual é a deste porto? O vinho foi produzido por um pequeno produtor vizinho da Quinta do Vallado, na região do Baixo Corgo, e guardado em três barricas de 650 litros ao longo de várias gerações, sem qualquer adição de vinhos de safras mais recentes, como é costume na região. Parte do caldo evaporou – o que é natural – e das três barricas restaram 700 litros que foram encontrados após uma varredura entre os produtores locais para encontrar um vinho que pudesse representar os 300 anos do Vallado. As uvas, de plantas pre-filoxera (a tal praga que dizimou as parreiras europeias), são as tradicionais do Douro, onde se destacam a Tinta Roriz, Tinta Amarela, Touriga Nacional, Touriga Franca, e sabe-se lá mais o quê. É incrível como estas relíquias ainda se encontram disponíveis e com uma qualidade assombrosa. “Quando encontramos as barricas sabíamos que era o vinho que podia representar os 300 anos do Vallado”, comentou João Ferreira.
Minha conexão com o passado
A Quinta do Vallado foi um dos primeiros vinhos de mesa de qualidade do Douro que provei, muitos anos atrás. Na época eram importados pela Expand, empresa que dominava o mercado de vinhos no Brasil. Atualmente são trazidos pela PPS. Novas safras e estilos foram caindo na minha taça ao longo do tempo e culminou em uma experiência que ficou registrada em meu paladar, em meus olhos, na minha memória e até em fotos.
Foi quando, em 2011, acompanhado do amor da minha vida, preguiçosamente tomei os rótulos do Vallado na varanda da casa-sede da vinícola no Douro, cercado de parreiras, o Rio Corgo deslizando abaixo entre as pedras. As garrafas foram abertas sem pressa e sem o compromisso de uma avaliação técnica: o vinho como tem de ser, apenas o prazer do desfrute. A sequência de rótulos foi se perdendo no tempo, mas ficaram marcados os estilos: Portos Vintage, Tawny, Vallado Touriga Nacional e um vinho especial, escuro e de potência ímpar, o Sousão, que descrevi no post abaixo.
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Tintos de mesa da Quinta do Vallado
Antes da epifania com o Quinta do Vallado ABF 1888, tivemos como introdução exemplares de vinhos de mesa. Especializados por anos a fio na produção de Portos, o Vallado começou a comercializar vinhos de mesa apenas em 1990. Aqui vão três destaques deste dia:
Quinta do Vallado Reserva Branco Branco 2015
Uvas: Gouveio (40%), Arinto (35%) e Viosinho (15%), Rabigato (10%)
Região: Douro, Portugal
Enólogos: Francisco Olazabal e Francisco Ferreira
R$ 190,00
Um vinho branco com caráter do Douro, fermentado em barricas de 500 litros, que integra a madeira ao caldo e cria uma camada untuosa com boa persistência e aquele toque da malolática (aquela sensação amanteigada que aqui é acompanhada de certa mineralidade). Aquele menino, o Robert Parker, deu 95 pontos a este vinho. Quem sou eu para dizer algo contra, né não?
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Quinta do Vallado Tinta Roriz 2014
Uva: 100% Tinta Roriz
Região: Douro, Portugal
Enólogos: Francisco Olazabal e Francisco Ferreira
R$ 480,00
Um Douro com uma expressão aromática bem definida: frutas maduras e notas balsâmicas. As uvas são provenientes de vinhas velhas de agricultura orgânica. É uma delícia na boca, muita fruta, concentração, carnudo e longo final. Adormece 16 meses em barrica. Olha, existe atualmente uma implicância com barrica, mas o Vallado sabe manuseá-la para trazer complexidade e sabor ao vinho. Aqui, um bom exemplo de como integrar o mosto fermentado à madeira .
Quinta do Vallado Vinha da Coroa 2015
Uvas: bem, são 34 diferentes variedades, tá bom para você?
Região: Douro, Portugal
Enólogos: Francisco Olazabal e Francisco Ferreira
R$: 600,00
Uau! Pouco técnico, mas preciso começar a descrição deste vinho com uma interjeição mesmo. Os vinhedos têm mais de 100 anos. Tudo junto e misturado, as mais de 34 variedades plantadas — Tinta Roriz, Tinta Amarela, Touriga Franca, Touriga Nacional, Tinta Francisca, Tinta Barroca, Moreto e por aí vai — são fermentadas em lagares de cimento e com uma maceração delicada de baixa extração – só chega na garrafa o suprassumo da fruta. Passa 14 meses em barricas de segundo uso. Toques tostados e de fruta madura no nariz. A boca é macia, aveludada, a fruta presente, o tostado na boca também, o toque de terra, as especiarias e um final longo. Um baita vinho, o melhor Quinta do Vallado de mesa que já provei. O preço… bom, quem sabe um crowdfounding juntando o Vinha da Coroa e o ABF 1888 ajude e encarar. O “uau!” do início cabe para o preço também.
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Caro Roberto,
Que maravilha deve ser este Porto! Para sonhar…rs.
Sou fã de todos os Vallado. Acho o Reserva Branco muito bom. Você sabe onde pode ser encontrado em São Paulo? Já está disponível este 2016?
Abraços,
Flavio
Oi Flavio, também acho o Reserva Branco muito acima da média. A safra disponível no mercado é a de 2015, que tem a alta pontuação do RP. E vale muito a pena.
Foi um erro meu ter colocado a 2016 como a safra provada. E já está corrigido no texto. Peço desculpas pela falha.
Apareça sempre.
Abraços
Beto
O Vinho Quinta do Vallado Tinta Roriz 2014, parece uma excelente opção para um almoço especial! Ótima dica
Obrigada, continuação de bom trabalho.