Muita gente pergunta. Como é um vinho de 100 pontos de Robert Parker? Não sei quanto aos demais, mas o vinho do enólogo e consultor Paul Hobbs é parecido com seu autor. Elegante, clássico e discreto. Criador e criatura. O vinho não grita, argumenta; não se exibe, se apresenta. O Cabernet Sauvignon Beckstoffer Dr Crane Vineyard 2014 é um vinhaço que proporciona enorme prazer em beber.
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Os 100 pontos do Parker são uma discussão à parte, assim como o papel que exerceu no passado e qual o peso atual de sua influência. Na verdade a publicação que fundou, e vendeu, a Wine Advocate é quem pontua atualmente, com vários degustadores espalhados pelo mundo, os rótulos de cada região. Mas pergunta para qualquer vendedor ou importador o peso que o selinho de 100 pontos RP impresso no rótulo tem nas vendas… É um 100 pontos, afinal.
Os vinhos de Paul Hobbs são resultado da experiência de mais de 40 anos cuidando e selecionando vinhedos (próprios e de clientes), tratando as uvas com cuidado e vinificando com talento. O americano que começou a trabalhar nos vinhedos Mondavi e participou do primeiro time de enólogos do Opus One, virou uma referência em vinhos de qualidade e se tornou consultor internacional. Ele chegou a prestar serviços de consultoria a 35 clientes ao redor do mundo. “É uma ótima experiência para conhecer as regras de negócio de cada lugar, os diferentes climas e vinhedos”, contemporiza. Mas o enólogo de 65 anos que descobriu o potencial da malbec na Argentina, que maneja a cabernet sauvignon com maestria e foi um dos pioneiros da vinificação com uvas de vinhedo único, resolveu dar um tempo. “Não aceito novos contratos de consultoria”, anunciou. Hobbs, no entanto, presta serviços ainda para 15 clientes, como Viu Manent, Altair (Chile), Família Deicas (Uruguai) e Pulenta (Argentina). “Você faz o que gosta, aprende e até ganha um dinheiro”. O que pode ser melhor do que isso? Ele mesmo provoca e responde: “Ser o proprietário”.
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O enólogo americano tem vinhedos próprios nos Estados Unidos (CrossBarn, Paul Hobbs Winery), na Argentina (Viña Cobos), na França (Crocus, em Cahors), na Armênia (Yacoubian-Hobbs,) e está iniciando dois novos projetos: um na Espanha, na região da Galicia, em Ribera Sacra, onde pretende explorar o potencial de uvas nativas como godello (branca) e mencia (tinta), e outro na região de Finger Lakes, no estado de Nova York (Hillick & Hobbs). No geral Hobbs adota como modelo de negócio parcerias com produtores/investidores locais em propriedades fora dos EUA.
A Armênia produzia vinho há 6.000 anos
Entre os países que atua como proprietário a Armênia chama a atenção pelo inusitado. A gente nem sabe onde fica no mapa e o sujeito está ali investindo e produzindo vinhos de qualidade. Hobbs conta que o que motivou a trabalhar nesta região remota foi a história do país, da qual sempre foi apaixonado. Em 2007 escavações arqueológicas encontraram o que seria a mais antiga vinícola conhecida, o que comprova a presença do vinho nesta região desde o ano 4.100 aC. Para elaborar seus vinhos, pesquisou terrenos de altitude, uvas nativas de nomes impronunciáveis como areni, voskehat, qrdi e encontrou um parceiro, a família Yacoubain. Em 2008 iniciou a produção de seus rótulos na Armênia. A propósito a Armêrnia fica na Eurásia, e faz fronteira com o Azerbaijão, a Turquia, a Georgia e fica muito próxima do Irã.
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Outra novidade que Hobbs relata é a experiência em um vinhedo na região de Nova York onde está trabalhando com a variedade branca riesling, em parceria com um sócio alemão. “O solo é pura rocha, dá para ver camadas quando se trabalha o terreno”, explica. “Meu sócio não acreditou muito no potencial daquele solo, que julgava muito difícil”, mas após a segunda vinificação, ainda pequena, Hobbs crê que está convencendo que sua aposta é válida e o vinhedo ideal para desenvolver um riesling seco, muito mineral e de ótima qualidade.
Argentina, Malbec e Catena
Paul Hobs é um ícone na Argentina. Ali tem um de seus empreendimentos mais conhecidos no Brasil: a Viña Cobos, importado pela Grand Cru. Sua influência no entanto foi decisiva para colocar a malbec no mapa do vinho. Hobbs conta que Nicolas Catena apostava na cabernet sauvignon e na branca chardonnay para conquistar o mercado americano no início dos anos 1990. Mas Hobbs enxergou em um vinhedo de 100 anos da propriedade, em Lulunta, o potencial para desenvolver a variedade malbec. Pediu então permissão para Nicolás Catena para arrumar financiamento para cultivar a uva. Catena receava o problema de filoxera que afetara a malbec na França e negou, mas Hobbs teve o apoio do chefe de viticultura e o resultado foram 10 barricas de malbec de vinhedos antigos. O vinho foi levado para uma apresentação à imprensa nos Estados Unidos. Um jornalista do Seattle Times se encantou com a bebida e escreveu um artigo com o título “Don’t Cry For Me Argentina” que deu a publicidade necessária para Hobbs receber o sinal verde de Nicolas para prosseguir com a variedade que fez a fama de Catena e depois da Argentina. “Mas não podia usar o nome Catena no rótulo”, conta ele, com um sorriso encapsulado. “Daí nasceu o rótulo Alamos, que no início chamava Alamos Ridge”, finaliza. (Confesso que desconhecia esta história, foi contada por Paul Hobbs neste encontro).
Chardonnay, Pinot Noir e Cabernet Sauvignon da Califórnia
Não é muito comum a oferta de vinhos americanos no Brasil. Por diversas razões: há um forte mercado consumidor interno que dispensa a exportação, os preços são difíceis de competir e, apesar de caldos de alta qualidade e boa diversidade, são menos conhecidos do público consumidor brasileiro. A Califórnia é responsável por 90% do vinho dos Estados Unidos. Ali estão localizados os vinhedos de CrossBarn e Paul Hobbs Winery (Sonoma e Napa Valley).
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Os rótulos de Paul Hobbs não são baratos, mas negar-se a comentar um vinho caro é o avesso do preconceito que desdenha o potencial de um vinho mais barato. Um vinho de qualidade excepcional, afinal, é o momento de um encontro do sensorial com o gustativo, da matéria com o efêmero, do etéreo o com o racional. Não importa se caro ou barato. A avaliação aqui é do vinho e não de suas ações na Bolsa. Este é o conceito que rege as três avaliações a seguir.
Paul Hobbs Chardonnay Russian River Valley 2015
Uva: 100% chardonnay
Região: Sonoma County
Preço: 159,50 dólares*
Importadora:Mistral
* a importadora Mistral trabalha com preços em dólar com a cotação do dia.
A região de Russian River Valley tem um amplitude térmica (diferença de temperatura entre o dia e a noite) que vai dos 30º de dia para os 10, 12º à noite. É uma das áreas mais frias de Sonoma. Esta característica preserva a acidez e a fruta, explica Hobbs. 100% das leveduras são indígenas, não filtram o vinho, a fermentação malolática é espontânea, ou seja, não há elemento estranho na vinificação. Estagia 12 meses em barricas de carvalho francês, 50% novas, e 4 meses em tanques de inox. “Fazemos como os monges faziam”, simplifica Hobbs, que aplica uma orientação não–intervencionista neste caldo. E daí? E daí que o resultado na taça é um chardonnay clássico, que alia potência com mineralidade, com uma baita riqueza de aromas, frutas brancas maduras na medida e expressivo final de boca. Conduziu com elegância uma dança com vieiras grelhadas com um molho branco à base de couve-flor.
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Paul Hobbs Cabernet Sauvignon Beckstoffer Dr Crane Vineyard 2014
Uva: 100% cabernet sauvignon
Região: Napa Valley
Preço: 778 dólares *
Importadora:Mistral
* a importadora Mistral trabalha com preços em dólar com a cotação do dia.
Este cabernet sauvignon vem do filé mignon dos vinhedos americanos, a região do Napa Valley. O Napa representa apenas 4% do total de volume produzido nos EUA, mas 20% do valor dos vinhos produzidos na Califórnia. No caso, um vinhedo único de Paul Hobbs. Se você curte cabernet sauvignon, e quer entender o que esta uva pode oferecer de melhor, esta é uma aula magna. Um tapa na cara daqueles que desdenham a uva tinta mais internacional de todas. “Para mim, a cabernet sauvignon é a uva mais interessante ”, sustenta Hobbs. Aqui ele repete a receita de leveduras indígenas, fermentação malolática espontânea. O estágio em carvalho (novo, francês) é de 20 meses, sem que ele sobressaia no vinho, mas afine o vinho. É, minha gente, barrica não é crime se bem utilizada. Ter a oportunidade de provar o Paul Hobbs Cabernet Sauvignon Beckstoffer Dr Crane Vineyard 2014 é entender como é possível a uva entregar um vinho com tanta personalidade, complexidade, estrutura e ao mesmo tempo não impor a potência fabricada, mas sim revelar nuances da uva. Intensidade de aromas, de frutas maduras, de final de boca. Um cabernet sauvignon potente, cheio de nuances e envolvente, que fica na memória, como um rock clássico, daqueles que marca um momento de nossas vidas. O vinho tem incríveis 15,1% de álcool que não se percebe por conta do equilíbrio dos taninos finos. Se quiser enfim investir em um vinho de 100 pontos de Parker (no caso da publicação Wine Advocate), este aqui é puro prazer. Do punho do próprio Parker, há a seguinte declaração sobre o rótulo: “É o meu favorito neste grupo, e tem o potencial de se tornar um vinho perfeito”. O que nos leva a uma segunda pergunta, além daquela que inicia este texto, questionando como é um vinho de 100 pontos. Existe um vinho perfeito? Não sei, novamente, mas adoraria discutir esta questão tomando um Dr Crane com que achar este um tema relevante e estiver disposto a compartilhar sua garrafa com este palpiteiro.
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Paul Hobbs Pinot Noir Katherine Lindsay Estate Vineyard
Uva: 100% pinot noir
Região: Sonoma County
Preço: 279,50 dólares
Importadora:Mistral
* a importadora Mistral trabalha com preços em dólar com a cotação do dia.
Os Estados Unidos também produzem ótimos pinot noirs. Este é um deles. Se o cabernet Dr Crane pode ser comparado a um rock clássico, acho este pinot noir de vinhedos próprios pode ser classificado como uma partitura de jazz. O jazz é uma música mais difícil de ser assimilada, que pode até causar estranhamento aos não iniciados, algo que às vezes acontece com paladares desacostumados à delicadeza da pinot noir. Adormece 15 meses em barricas de carvalho francês, 71% novas. É um vinho macio, delicado, com camadas de aromas marcantes e sabores que vão aparecendo como um improviso de jazz: especiarias, cerejas, terra úmida. Às cegas poderia ser classificado como um legítimo Côte de Nuits. Perguntado se nunca pensou em arriscar um vinhedo na Borgonha, Paul Hobbs refutou a ideia: “Tudo ali já foi feito há séculos, não há o que eu possa contribuir”. Continue com seus pinot da Califórnia, Paul, e não se fala mais nisso.