Quais segredos catorze safras de um vinho popular e conhecido, como o português Periquita, podem revelar? Uma vertical – várias safras de um mesmo vinho – patrocinada pela Confraria do Periquita no início de junho de 2022 foi a prova dos noves. Foram 14 taças do Periquita servidas na sequência, das mais recentes às mais antigas: 2020 (que está no mercado), 2019 Reserva, 2016 Magnum, 2015 Reserva, 2012 Reserva, 2007 (edição comemorativa dos 160 anos), 2005 Reserva, 2005, 2001 Clássico, 2001, 1999 Clássico, 1997 Clássico, 1995 e 1994. A aposta foi demonstrar o potencial de longevidade, a qualidade e a constância da marca. Rolou? O resultado você encontra nos parágrafos mais abaixo.
Pausa para um pouco de história
Em 1850, durante o segundo reinado de D. Pedro II, foi decretada no Brasil a Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico de escravos. No mesmo ano, em Portugal, na região da Península de Setúbal há documentos que comprovam que o vinho Periquita já era produzido pelo senhor José Maria da Fonseca. Mil oitocentos e cinquenta, ó pá! Hoje é um vinho blockbuster: são produzidas 4 milhões de garrafas deste clássico lusitano e se você é um apreciador de vinho (o fato de estar escaneando este texto aumenta a probabilidade) certamente já tomou um gole – ou muitos – deste tinto. Até mesmo os menos atentos já trombaram com o rótulo nas prateleiras de um supermercado.
Sinônimo de vinho português no Brasil – de mãos dadas com Casal Gracia, talvez -, o Periquita alcançou tal nível de reconhecimento na ex-colônia a ponto de ser sempre lembrado entre os especialistas, e consumidores, como um vinho que representa Portugal e com preço acessível. Até as piadas de duplo sentido foram superadas diante do recall da marca. Mesmo assim, seguro morreu de velho, né não? A campanha internacional “Periquita, nas bocas do mundo desde 1850” foi considerada um tanto arriscada para atravessar o atlântico e não será divulgada no Brasil. Compreensível. Eu não arriscaria jogar este slogan deste lado do Atlântico em tempos de memes e redes sociais.
O Periquita tem este nome pois foi justamente numa região da Península de Setúbal conhecida como Cova da Periquita onde foram plantadas as primeiras videiras de castelão, a uva protagonista do vinho, originárias da região de Ribatejo. Como ficou conhecido como o vinho da Periquita o fundador resolveu adotar o nome. E deu certo. A ponto de muita gente confundir a uva castelão com uma imaginária periquita. Lá em 1988 já cravou uma medalha de ouro na Exposição de Vinhos de Berlim. Continuando o paralelo histórico com o Brasil, foi o ano da abolição da escravatura. O biscoito era fino: rótulos impressos em Paris, garrafas da França e Inglaterra. Primeiro vinho a ser engarrafado em Portugal, nesta época eram produzidas cerca de 50 mil garrafas ano. Curiosamente a marca Periquita só foi registrada em 1941.
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Tinto, Reserva, Clássico
A José Maria da Fonseca tem uma ampla gama de rótulos do Periquita, incluindo um branco bastante elogiado, um topo de gama, que atende pelo nome de Superyor (assim mesmo, com ípslon), passando por rosés e a praga do Red Blend, um tinto mais docinho, com mais açúcar residual (são 17,5 gramas por litro) que este palpiteiro se dá ao direito de torcer o nariz – literalmente – mesmo entendo que é uma demanda do mercado para atender um certo tipo de consumidor.
Aqui o foco são os rótulos Tinto, Reserva e Clássico, que melhor representam o DNA da empresa, na minha opinião, e fizeram parte desta vertical. Todos os vinhos produzidos na Periquita são crias do enólogo Domingos Soares Franco, formado na Universidade Davis, na Califórnia, o que de certa forma trouxe uma visão de novo e velho mundo na concepção dos caldos. Ou seja, há um olhar para o mercado, para as mudanças do gosto do consumidor, para a evolução da tecnologia, mas também um respeito à tradição, refletidas em cada estilo de vinho.
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Periquita Tinto – é o mais popular vinho da marca, com aquela moldura em vermelho. Vale lembrar aos saudosistas que as etiquetas sofreram uma alteração de layout em 2018. Lá pelos anos 1980 a receita ganhou toques de modernidade com a colheita das uvas num ponto maior de maturação, a temperatura das cubas mais controlada que resultaram em um vinho pronto para beber desde seu lançamento (lá atrás um Periquita de safra recente era praticamente impossível de beber novo devido aos seus taninos e rusticidade). Há consistência no trio de uvas que fazem parte da receita do Periquita: castelão (maior porcentagem desta), trincadeira e aragonês (menor desta). Passa seis meses em carvalho francês e americano novos. Curiosamente a safra de 2021 se anuncia com uma troca do aragonês pela alicante bouschet.
Periquita Reserva – o Reserva foi criado em 1970 e aqui o castelão, claro, é mantido (na média metade da porcentagem) mas novas parceiras são adicionadas: as castas regionais e autóctones touriga francesa e touriga nacional conferem maior intensidade ao vinho, um final mais longo, uma fruta mais madura e uma boca bem redonda. Passa por oito meses em carvalho francês e americano novos.
Periquita Clássico – o velho mundo, ou o estilo de fazer Periquitas do passado, foi retomado nos anos 1990 por Domingos Soares nesta linha. Aqui não há espaço para parcerias. A castelão reina sozinha. Quer conhecer o potencial e a característica do castelão? Este é o vinho, pois. As uvas são fermentadas com engaço (o cabinho da uva) e a temperatura é menos controlada, o que torna o vinho um pouco mais tânico com uns toques de rusticidade, que são afinados pelo envelhecimento em madeira (24 meses de barricas antigas). Somente são lançadas safras de colheitas consideradas excepcionais. Foram produzidas nos anos de 1992, 1994, 1995, 1999, 2001, 2004 e 2014.
A confraria
Realizada pela primeira vem em um ano ímpar, 1993, a Confraria do Periquita se reúne todos os anos pares para bebemorar este vinho com mais de 170 anos. São 240 confrades – e subindo -, entre eles portugueses, brasileiros, suecos (o Periquita é um sucesso ali, onde também é consumido em bag-in-box), noruegueses, norte-americanos. Afinal, a etiqueta é global, espalhada em mais de 70 países. Paramentados com uma vestimenta típica e um chapéu que lembram os trajes dos formandos em faculdades, os confrades são embaixadores da marca. São nomes ilustres de Baco, membros da família e celebridades que apreciam a bebida. Do lado de cá, nomes conhecidos como da apresentadora Ana Maria Braga e da cantora Fafá de Belém, além do consultor de vinhos do Grupo Pão de Açúcar Carlos Cabral, profundo conhecedor dos vinhos portugueses e estudioso do vinho do Porto. Existe uma regra para realização destes encontros. É necessário que a idade dos confrades presentes seja igual ou superior à idade da vinícola.
É mais raro uma confraria apenas de uma marca, como esta. No geral elas tratam de regiões (a Confraria do Vinho do Porto, do Dão, por exemplo). A degustação cumpre o papel de manter viva uma tradição e também de criar um fato novo a cada dois anos (quem entrou para a confraria, quais vinhos servidos, lançamentos, etc). Para Carlos Cabral, confrade que conduziu o encontro em São Paulo no início de junho de 2022, “esta história tem de ser contada para o mundo”. São sete gerações no comando da empresa, há um sentimento importante de “família”, destaca Cabral, ladeado por António Soares Franco, representante da sétima geração da família e sobrinho de Domingos Soares Franco, este da sexta geração.
A vertical, 14 rótulos do Periquita
Vale um disclaimer. Uma vertical é uma experiência mais comum com vinhos de um único rótulo de alta gama, aqueles de topo de linha, geralmente com muitos zeros à direita na etiqueta do preço. Nesta prova foram misturados três rótulos do Periquita e de preços variados: o Tinto, o Clássico e o Reserva. Dos três vinhos apenas o Clássico exige um desembolso maior do consumidor. Na média os preços de mercado são, respectivamente: R$ 89,00 (Tinto), R$ 100,00 (Reserva) e R$ 380,00 (Clássico). O objetivo da degustação não era uma disputa, muito menos uma análise que envolvesse notas, mas uma demonstração do potencial do vinho.
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Servidos em taças com etiquetas indicando o tipo de vinho e safra, os homens que cospem vinho foram para o embate. Partindo do tinto mais recente até os mais antigos, a degustação das 14 safras foi uma experiência didática. E prazerosa. Majoritariamente resgatados da adega privada de Carlos Cabral, alguns vinhos mais antigos surpreenderam, em especial o Classico de 1997 – que tinha 95% de castelão e 5% de tinta amarela -, com um aroma mais etéreo e terroso -, e o de 1994 que mais parecia um Madeira ou mesmo o Moscatel de Setúbal, algo que não se espera que vá se transformar um Periquita (um vinho para se tomar de joelhos, segundo António Soares Franco). O Periquita teve suas características demarcadas pelo tempo que permaneceu em garrafa: mais exuberância de frutas, pronto para beber, modernos e agradáveis, como os tintos das safras 2020 e 2016 (Magnum), passando pelos reservas que na minha opinião ficam no meio do caminho entre o Tinto (mais contemporâneo e frutado) e o Clássico (um castelão mais raiz, que mostra mais o potencial da região e do lugar). Os Reservas seguintes de 2015, 2012 me pareceram privilegiar uma fruta mais madura, tanino mais macio, uma baunilha mais persistente da barrica.
Finalmente, ao chegar no pelotão mais antigo, o tempo se mostrou generoso mesmo àqueles rótulos que não foram concebidos para evolução. O tinto 2005 (meu preferido e surpresa da noite) dava um banho de evolução e tipicidade no Reserva do mesmo ano. E a explicação pode estar no blend, onde o castelão entra com 79% da mistura contra 10,5% de trincadeira e 10,5% do aragonês. Nos tintos mais recentes, a casta castelão fica em torno de 50% da mescla. No Clássico, destaque para os da safra 2001 e em especial 1997. Como sempre tem um patinho feio no meio de cisnes exuberantes a safra de 1995 se mostrava cansada, talvez com um problema de rolha. Volto aqui às safras de 1997 e 1994 e o tinto 2005 e ainda incluo o também tinto 2001. O elo de ligação, que na minha opinião destacou estes vinhos em relação aos demais, é a maior participação da uva castelão. Conclusão, o fundador não estava errado quando escolheu esta uva como a porta-bandeira do Periquita. Usando o batido jargão da campanha à presidência de Bill Clinton de 1992, eu repetia a mim mesmo: “Não há nenhum segredo. É a castelão, estúpido!”
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Oquei, raramente o consumidor terá uma oportunidade destas. Nem faz muito sentido. Eu fiz este sacrifício por vocês, meus queridos poucos e bons leitores. E o relato está aqui. No dia a dia, abrimos nossas garrafas de Periquita tinto para consumo imediato, alguns Reserva também. São vinhos de nosso tempo, do imediatismo, da relação imediata entre compra e consumo. No entanto, surpresas acontecem. A longevidade é possível até mesmo nos tintos não pensados para tal. A linha Periquita Clássico é um pouco diferente, repousa mais tempo nas adegas antes de partir para o mercado, e se espera mesmo uma evolução mais importante na garrafa. Uma vertical de 14 safras do Periquita é, enfim, uma espécie de selo real que garante uma autenticidade única a um vinho idem. Consegue ao mesmo tempo ser popular e clássico, tradicional e moderno.