Gerosa é um sobrenome de origem italiana. Mas curiosamente o gosto pelo vinho não foi uma herança cultural de família. A geração do meu pai bebia cerveja (Antarctica) e uísque (contrabandeado). Nas festas de família o vinho passava ao largo dos brindes. No fim de sua longa vida, no entanto, esta era a bebida que meu pai tomava todas as noites e se tornou um elo importante na nossa relação.
A Itália produz vinho em todas as regiões do país. E há muito tempo. Os gregos denominavam o país de Enotria, Terra dos Vinhos. Meu avô, o nono Edílio, nasceu na Itália e veio para o Brasil. Minha avó, Dona Linda, apesar de ter nascido no Brasil foi para a Itália ainda criança e voltou anos mais tarde, mas nunca perdeu o sotaque italiano: aquele jeito de falar que mistura português e italiano e cria uma terceira língua. Meu pai, no entanto, nem falava italiano (mas entendia) muito menos bebia vinho. O vinho dos ancestrais não viajou com a família. Não tenho qualquer recordação das macarronadas regadas a um tinto. Ou de um branco nos dias de calor. No máximo um cálice de vinho do Porto dava o ar de sua graça na casa dos meus pais (guardado por anos no armário, diga-se de passagem…). Mas aí era contribuição da minha mãe, influenciada pelo hábito de seu pai, longe de ascendência italiana e de tradicional sobrenome português: Nogueira.
“Seu”Elídio
Meu pai faleceu em novembro de 2020, aos 95 anos (a alguns meses de completar 96), vítima de covid 19. Só mesmo a pandemia para derrubar o velhinho. Era lúcido, tinha uma ótima saúde para sua idade, olhos azuis meio acinzentados que enxergavam melhor do que os meus e curiosamente mantinha uma boa quantidade de cabelos negros. Nunca tinha entrado num hospital até se submeter a uma cirurgia no fêmur para livrá-lo de uma excruciante dor quando estava próximo dos 90 anos. De alto risco, devido sua idade, a operação foi um sucesso e em pouco tempo voltava a andar. E sem dor. Ou com uma dor suportável. Acabou submetido a outras internações por conta de pneumonias nos últimos anos, mas como fênix, voltava mais forte. O lema era: rumos aos 100 anos!
Aos 95 anos “Seu” Elídio, este era seu nome, uma variação muito original do nome do nono Edilio, era um idoso 2.0. Acompanhava atento o noticiário – lia todas as manhãs a edição impressa do Estado de S. Paulo, jornal que foi assinante desde que eu me entendo por gente, e se atualizava ao longo do dia com noticiário nos portais de internet e nos jornais da TV. Passava horas no computador ouvindo seleção de canções dos musicais de Hollywood das décadas de 1940, 50 que descobriu no YouTube enquanto enganava o tempo com alguns joguinhos eletrônicos.
O vinho para o meu pai era um momento de prazer, um alento que um tanto de álcool podia proporcionar à sua limitada vida de idoso, uma companhia na refeição. E uma oportunidade de compartilhar a mesma bebida comigo e com meu irmão. Não havia no hábito qualquer veleidade ou pretensão. Também jamais associou o vinho aos seus antepassados, o que confirma minha tese que não foi um hábito herdado pela ascendência italiana. Ele comprava – e bebia – vinhos do dia-a-dia. Atento aos anúncios de ofertas dos supermercados nos jornais, garantia para não ficar com a adega desabastecida.
Vinhos dos dia-a-dia
“Seu” Elidio foi um homem do seu tempo. Funcionário de carreira pública federal, responsável, sério, era o provedor da casa. Alguns anos atrás, tirei um sabático (para ele significava que eu estava desempregado e ficava preocupado com esta minha opção) e volta e meia indagava se estava precisando de algum dinheiro. Ficou viúvo aos 89 anos, após um casamento de 60 anos. Achamos que iria murchar, mas aos poucos foi renovando seu interesse pela vida. Os filmes, o futebol, as séries, os jogos no computador, o vinho da noite. Metódico, tinha horário certo para almoçar, tomar lanche, jantar e anunciava a proximidade das refeições com um assobiar leve, como um sinal de fábrica marcando o horário das coisas.
Seus rótulos preferidos eram os chamados vinhos do dia-a-dia: Reservado da Concha y Toro, Santa Carolina Reserva e mais recentemente a linha 120 Reserva Especial ou 3 Medalhas, ambos da Santa Rita. Vinhos de volume de grandes empresas. Paradoxalmente, alguns italianos de boa cepa que abri em sua companhia ele achava um pouco ácidos demais. Estava já aculturado ao vinho sul-americano. Eram duas taças todas as noites. O que só reforça a importância destes rótulos da base da pirâmide no consumo do vinho. Os vinhos com faixa de preço até 60 reais são responsáveis por 40% das importações dos vinhos importados no Brasil. Os vinhos nacionais também oferecem boas oportunidade que atendem este público: como a linha Classic e Intenso, da Salton, Miolo Seleção e Reserva, da Miolo, Aurora Reserva, da Aurora, para ficar em três grandes. A chamada base da pirâmide serve tanto como uma iniciação ao mundo do vinho como atende consumidores que buscam o melhor preço. E muita gente permanece, bastante confortável, consumindo apenas estes vinhos e não há nada de errado nisso.
Meu relacionamento com pai seguiu uma espécie de manual com muitas exceções. Nunca apanhei quando criança. Para alguém da minha geração, muitos colegas acham até esquisito. Minha mulher costuma às vezes culpar, com ironia, claro, a falta de surra como resultado da minha personalidade atual. Nossa relação na adolescência e como jovem adulto era pura faísca. Ele, de ideias conservadoras. Eu, com ideais progressistas. Para piorar, resolvi fazer jornalismo. Nem o futebol deu liga. Para decepção do “Seu” Elídio nem eu nem meu irmão ligamos muito para o ludopédio. Até de time eu mudei na juventude. Ele era São Paulo e eu influenciado por amigos da rua virei Santos (de araque! eu durmo assistindo jogos na TV). Além do mais eu era um verdadeiro perna de pau. Ele jogou futebol até a idade adulta. Não guardo também aquelas recordações que trazem ensinamentos de vida, uma viagem a dois, uma revelação extraordinária. Foi uma amizade (re)construída com o tempo.
Em algum momento, porém, eu decidi que não entrava mais em bola dividida com ele. Assuntos de política e costumes eu evitava. E neste fino fio que tece as relações entre pais e filhos eu fui desatando os nós e tecendo uma nova perspectiva de convivência e carinho com meu pai, buscando entender sua visão de mundo, ou apenas respeitando as coisas como elas são.
Verbo de ligação
Tenho claro alguns trejeitos dele, me vejo repetindo alguns hábitos. Um que definitivamente herdei do meu pai: comer alcachofra com azeite e sal. Este sim uma herança gastronômica trazida pelos italianos ao Brasil no século 20. Aquele ritual que exige alguma paciência de desfolhar a alcachofra, passar no azeite, puxar a base das folhas entre os dentes até chegar no miolo, ou coração, que será também embebido no azeite e desfrutado com regozijo. Ironia. Justo a alcachofra, que costuma ser de difícil harmonização com vinho!
Mais tarde um interesse em comum nos uniu: o vinho. O vinho foi um verbo de ligação. Invertendo a ordem natural das coisas, eu fui laçado pela bebida muito antes que ele. Estudei um pouco, li bastante e principalmente bebi muito, associando litragem a conhecimento, para então descobrir que num tema tão vasto só sei que (quase) nada bebi. Ele com idade mais avançada foi começando a comprar suas garrafinhas e encontrando o seu gosto. Não era uma decisão apenas pelo valor, ele tinha condições de comprar rótulos mais caros. Era gosto mesmo.
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Com o passar do tempo “Seu” Elídio foi desenvolvendo uma ironia ácida e um bom humor que não definiam sua personalidade na vida adulta. Assim como migrou do uísque para o vinho, com o tempo trocou a cizânia pela galhofa. Adorava, para me provocar, imitar o balé de levar a taça no nariz e dizer qualquer bobagem e dar um sorriso em minha direção. Ou mesmo não se furtava a comentar com filhos, noras e netos alguns quilos de acréscimo na silhueta sem constrangimento algum. Meu pai ficou mais leve com a idade. E com menos auto-censura.
Um evento especial
Claro, que de bobo “Seu” Elídio não tinha nada. Os rótulos mais caros que eu e meu irmão presenteávamos em seu aniversário, no Dia dos Pais ou Natal ele apreciava com gosto. E guardava apenas para ocasiões especiais. Entre tantos brindes que fizemos nos seus últimos anos, um ficou marcado. Para nós dois. Um evento comemorativo dos 40 anos do rótulo chileno Marques de Casa Concha, da vinícola Concha y Toro, realizado no Terraço Itália, um restaurante tradicional da cidade de São Paulo, no topo do edifício de mesmo nome. A vinícola teve uma ideia original e com um significado especial. Juntou especialistas, críticos, palpiteiros e clientes para compartilhar com seus pais as garrafas de chardonnay, carmenère e cabernet sauvignon Marques de Casa Concha. Então com 92 anos, com alguma dificuldade de locomoção, meu pai vestiu terno e gravata, como fazem os homens sérios, e ficou numa felicidade imensa de finalmente participar de um evento de vinho com seu filho caçula. Na nossa mesa, Suzana Barelli e seu pai Walter Barelli (também falecido) eram outra dupla que aproveitava este momento pai e filho/a. Dada hora, o crítico de vinhos Didu Russo, sempre com sua gravata borboleta e bem-humorado, veio nos cumprimentar. Apresentado a meu pai, comentou: “Seu Elidio, eu gosto muito do seu filho”. Meu pai virou para ele e vestindo seu figurino mais recente de boa-praça assentiu com um sorriso óbvio: “Eu também”!
Quando a covid foi identificada e meu pai foi internado, ele não desenvolveu maiores sintomas da doença. Minha última imagem do meu pai é um vídeo gravado na UTI pelo celular em que ele dizia, desafiador, que estava assintomático (termo que o enfermeiro cochichou para ele). Mas o vírus foi implacável e agiu rapidamente e em pouco tempo a doença tomou seu corpo e foi entubado. Creio que não teve consciência da gravidade da doença. Ou pelo menos prefiro achar que foi assim. Quando os médicos e psicólogos especializados em cuidados paliativos chamaram eu, meu irmão e minha irmã para explicar a situação e saber nossa opinião, foi por uma conferência por vídeo. A Covid 19, entre outras cicatrizes, criou um vácuo na despedida das pessoas que amamos, dos nossos parentes. Não houve velório. Fomos chamados ao hospital para liberar o corpo, que seguiu em caixão lacrado para o cemitério Araçá. Ali funcionários paramentados de roupas brancas e máscaras, como nos filmes que víamos com alguma incredulidade antes da pandemia, trataram de enterrar meu pai sem ritual, apenas com o mínimo de familiares como testemunha. Uma sensação estranha de que algo aconteceu, mas não se realizou.
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Tome um vinho com seu pai
Nosso último encontro pessoal, um dia antes de ter detectado o vírus e consequente internação hospitalar, foi na casa de minha irmã, onde ele morava. Respeitando o protocolo, não tivemos contato. Nem nos beijamos. Acompanhei, de máscara, ele tomar seu lanche da noite. Já tinha anunciado com seu assobio que estava na hora. Acompanhando as salsichas que ele comprimia dentro de um pedaço de pão, num cachorro-quente improvisado, uma taça de vinho tinto. Assim, simples, prazeroso, cotidiano, sem exageros. Harmonização da alma: cachorro-quente e cabernet sauvignon. Um dos últimos momentos com meu pai.
Pais, vinhos e brindes. Esta é uma combinação que faz bem ao espírito, que tem o poder da conciliação, do compartilhamento. Da boa lembrança. Neste dia dos pais, e em todos que puder, tome um vinho com o seu.