Em maio de 2013 eu cometi no blog uma lista de vinhos para cada estilo de mãe. E no final, em homenagem à minha mãe, minha leitora habitual (mãe é mãe), recomendei um Vinho do Porto, seu preferido, para a mãe que já era avó. Minha mãe, que sofria de uma doença que debilitava seu sistema respiratório, foi internada logo em seguida em uma UTI e a doença seguiu seu curso inexorável e nos privou de seu sorriso, de sua convivência, de sua alegria de viver. Ela não teve tempo de tomar o seu Portinho desta vez, que ela provava aos golinhos (“para não ficar tontinha”) e que remetia ao seu pai, meu avô que não conheci, o que de alguma forma, percebo agora, fechava um ciclo.
Há pessoas que precisam morrer para se tornar mais belas, boas e até queridas. Há outras que são belas, boas e queridas também em vida. Minha mãe era deste segundo tipo. 2013 foi o ano que ela nos deixou (eu escrevi este texto faz um tempo, mas deixei amadurecer para aparar as arestas e domar os taninos). 2013 terá para sempre este travo amargo em minha vida, em nossas vidas. Minha mãe, que se recusava ficar velhinha (“estou quase velhinha” dizia aos seus 84 anos), e sempre almejou um fim sem dor (acabou seus dias com aparelhos que auxiliavam sua frágil respiração), foi capaz de sorrir e nos dar esperança até os últimos momentos lúcidos e teve a oportunidade de, à sua maneira, se despedir de todos nós.
Seu estado clínico era grave, mas mesmo assim ela mantinha um otimismo inabalável na vida, na sua recuperação, nas pessoas – se considerava uma privilegiada por contar com a assistência da UTI (“todos muito atenciosos e carinhosos”). Era querida por todos que a tratavam. A cuidadora que acompanhou de perto seus últimos momentos me contou que um dos enfermeiros que a atendia chorou ao vê-la nos seus instantes derradeiros. Chegou a ser entubada – e neste momento delicado o corpo médico nos alertou para o pior – e em seguida foi estubada (retirada dos tubos) e, surpreendentemente, voltou consciente. No momento exato que recobrou a consciência eu não estava presente, mas sim meu pai, minha irmã e meu irmão. Eles me contaram que ela abriu os olhos e ficou procurando alguém acima de suas cabeças, algo que não conseguia enxergar mas queria ver. Como eu sou alto, minha irmã perguntou? “O que foi mãezinha, está procurando o Beto?”. Ela consentiu com a cabeça. Eu cheguei mais tarde e ficamos todos em sua volta. Ela estava proibida de falar muito para não se cansar, mas ficava conversando. E quando aconselhávamos que descansasse um pouco um silêncio dominava o ambiente e ela resmungava” “Tá vendo, se eu não falo ninguém conversa…”. E sorria. Ela era o cimento que unia aquelas pessoas.
Por fim, os médicos recomendaram uma sedação, para mitigar o sofrimento. Ele alternava momentos lúcidos com pequenas doses de sono, acompanhados de sonhos. Acordava, arregalava os olhos, sorria e comentava: “Dormi…”. Uma médica, pneumonologista de um importante hospital veio vê-la na penúltima noite. Teve acesso aos exames, conversou com o corpo médico, nos chamou de lado e nos preparou para as últimas horas. Estava surpresa com a força da minha mãe, com a capacidade de reação, por seu apego pela vida. Não era normal para pacientes que sofreram processo de entubação e diante do seu quadro frágil. Ela se aproximou dela, segurou sua mão e com uma delicadeza rara disse: “Vai tudo dar certo, a senhora vai ficar bem”. Minha mãe, consentiu com a cabeça, sorriu e agradeceu: “Obrigada, benzinho”. Minha mãe adoçava o tratamento com todos ao seu redor finalizando o fraseado sempre com um “benzinho”, seguido de sorriso.
Há muitas lembranças desses últimos momentos. A gente pode escolher entre as cenas mais doloridas e as que mais representam a memória de quem a gente ama. Eu fico com a segunda opção. Me lembro da minha mãe segurando minha mão e repetindo várias vezes durante este período de melhoras e pioras: “Você sabe que a mamãe te ama muito, não sabe?” (creio que ela conseguiu dizer isso para todos que amava incondicionalmente), ou então quando ela finalmente revelou que entendia o roteiro daquela internação: “Não posso reclamar, tive uma vida muito feliz, e passei quase todos os meus irmãos, não é?” (ela teve 11 irmãos e a maioria deles morreu com idade menor que ela atingiu), ou ainda quando ela recobrou a consciência após a estubamento e pediu que meu pai – seu amor de toda a vida – a beijasse. Ele se aproximou e beijou-lhe o rosto. “Não”, ela reclamou, e tocaram os lábios um do outro, como fizeram nos últimos 63 anos de casados.
Mas a lembrança mais surpreendente foi na última vez que a vi consciente, antes de ser sedada com drogas mais fortes. Ela despertou de um desses espasmos de sonos rápidos, sorriu (ela sempre sorria, não tenho como evitar a repetição) e comentou. “Eu estava dançando!”. Minha irmã perguntou: “É mesmo, mãezinha?”. “Sim, eu estava dançando…” e chocoalhava os ombros, num estado de euforia e satisfação. “Estava com o papai?”, perguntamos. “Não, estava numa balada, estava dançando”, e continuava chacoalhando os ombros, ao som daquela música que só ela ouvia, quem sabe rodopiando num salão imaginário cheio de movimento e som. Na minha mais terna recordação da minha mãe em seu epílogo, ela dançava, rodopiava, mesmo que presa na cama, e sorria um sorriso largo.
- Leia também: Os vários tipos de Vinho do Porto
A partir do momento que a morfina comandou o cenário – foram dois dias -, e os aparelhos mantiveram a máquina funcionando eu me senti confuso, sem saber ao certo se ela nos escutava, se a vida era plena ou apenas induzida. Não sei o que passa pela cabeça dos pacientes neste momento. Será uma profusão de sonhos, de lembranças que se misturam aos sonhos, de desejos não realizados em vida enfim atendidos no imaginário, de encontros com vivos e mortos aprisionados na memória? O que será que acontece minutos, segundos, antes da despedida da vida? Perto da meia-noite de um domingo a cuidadora nos ligou informando que os batimentos cardíacos estavam diminuindo, a índice respiratório cedendo. Enfim, era uma questão de minutos. Minha mulher que atendeu o telefonema veio me avisar, me abraçar. Choramos juntos. Eu congelei por dentro e voltei a fazer o que estava fazendo. Precisava a confirmação final. Precisava me ocupar. Ela veio quinze minutos depois.
Eu, no meu delírio particular, me permito fantasiar uma cena que atende todo tipo de certezas e incertezas que temos diante do mistério da vida, pois não existe mistério da morte, ela é inexorável. Eu acho que naquele instante, naquele fragmento indivisível de tempo que separa a vida da morte nos cabe uma última frase, que responde todas estas questões, independente de nossas convicções: “Então, era isso?”.
Eu e minha mãe tínhamos muito em comum: temperamento, gosto pela leitura, curiosidade pelo aprendizado, uma certa capacidade de conciliar pessoas e o gosto pelo vinho do Porto, claro. Ela era uma mulher dominada pela fé: fé nas pessoas, na vida, em Deus. Mas não era uma fé proprietária, era sincretismo puro, sem abalar os alicerces de seu catolicismo. Para ela todas as crenças tinham valor, todas tinham ensinamentos a dar. Não entendia nem aceitava minha falta de religiosidade, de crença, mas respeitava minha opção e consentia que o melhor do ser humano é o que ele é: “Você é um homem bom”, ela me disse várias vezes. Ela via o lado bom das pessoas.
Naquele post das mães que publiquei sua foto (a mesma que ilustra este post), ela escreveu um comentário, seu último documento endereçado a este filho que ao contrário do que se possa imaginar não telefonava muito, ficava um tempo sem aparecer, mas que tinha uma afinidade que prescindia um pouco tudo isso (mas ela reclamava, claro; “Eu gosto quando você liga para mim…”). Minha mãe recortava os artigos que eu eventualmente publicava em revistas e imprimia aqueles publicados na internet, materializando assim seu arquivo sobre seu filho. Aquelas coisas que a gente acha uma bobagem na hora mas entende o significado depois:
Meu querido, filho,
Fiquei emocionada com seu carinho, e esta “quase velhinha””não perde seu blog: por nada…
Praticamente fiz o curso com você!! Até os testes tive a ousadia em participar.
Parabens!! e você seja sempre iluminado em todo seu trabalho, com otimismo e perseverança.
mamãe lhe ama demais, bjs
Assim como Drummond em seu poema, e a despeito de meu agnosticismo, fico me perguntando todos os dias, desde setembro de 2013:
Por que Deus permite que as mães vão-se embora?
R: Porque um Bom Jardineiro sempre recolhe as melhores flores primeiro.
Emocionantes palavras, Gerosa. Que o Bom Deus a tenha. Um abs.
Obrigado, Fabio, pela mensagem e participação.
abs
Obrigado. Sinto a sua como minha História.
Obrigado você, Marcelo, por sua mensagem e participação.
abs
que coisa linda!!
Oi Marcelo
Obrigado pelo seu comentário. Apareça sempre. abs
Belo texto meu amigo ! Sinto a sua dor, a gente sempre acha que a nossa dor é única, que doe mais na gente do que nos outros, somos egoístas até nisso, mas a dor é a mesma para todos que ficam inconformados e que não querem de jeito nenhum aceitar a partida de um ente tão querido que é uma mãe, como diz meu tio, a pessoa que mais ama a gente nesse mundo. No meu caso eu perdi a minha querida mãe avó, minha avó que era mais minha mãe do que avó, vim desde novinho pra casa da minha avó com minha mãe, ela que me criou junto com minha mãe. Como eu te amo minha avó, no dia 26/01/22 com seus 84 anos a senhora nos deixou. Igual a sua mãe a minha avó amava viver, amava a vida de uma forma tão bonita, aconselhava a todos a sua volta, era tão meiga e carinhosa. Eu só queria que ela soubesse que eu amo ela tanto, queria que o tempo passasse rápido, que eu cumprisse meus objetivos aqui muito rápido e pudesse ir ficar com ela. Para sempre vou te amar vó, obrigado por tudo e por principalmente acreditar em mim. Eu te amo. Que todos que perderam seus entes queridos em especial as suas mães fiquem com Deus e fiquem em paz. Obrigado