“Não agüento o convívio com pessoas que acreditam em coisas prontas. Eu não suporto gente que entende de vinho. O sujeito fica entendendo de vinho, cheirando rolha… Não tenho paciência”
Fernanda Young, VEJA (29/10/2008)
“O Inferno são os outros”
Jean-Paul Sartre
Em deliciosa aparição nas páginas amarelas de VEJA (leia a íntegra aqui), a premiada roteirista e elétrica apresentadora de TV, Fernanda Maria Young de Carvalho Machado, destilou sua irritação contra gente como eu e – provavelmente – você, que me lê aqui. A frase está tatuada acima. Como a liturgia do vinho, pelo visto, é material de trabalho da talentosa Fernanda, já nem tão young assim, este blog presta sua colaboração à autora, detalhando etapas de uma degustação de vinho absolutamente irritantes (pelo menos para os outros).
Cheirando a rolha – o garçom rompe a cápsula e deixa aquele pedaço de cortiça sobre a mesa. O que você faz? Cheira a rolha. Tem alguma utilidade? Praticamente nenhuma – a não ser, é claro, de irritar pessoas como a Fernanda Young. Raramente se descobre algum defeito no vinho desta maneira, requer muita prática. Alguns vinhaços, no entanto, já deixam seu carimbo na rolha e passá-la pelo nariz já pode revelar o tesouro que vem pela frente.
Observando a cor – a coloração de um vinho diz muito sobre ele. Nos tintos, a variação do violeta, passando pelo rubi até o alaranjado mostram sua idade, acidez, corpo ou até mesmo se está meio avinagrado. Nos brancos, a mesma coisa: os mais frescos são muito límpidos e aqueles que passaram por barrica, ou apresentam alguns anos de garrafa, vão tomando matizes mais douradas. Quais dicas a cor do vinho podem dar? Por exemplo, você comprou um tinto jovem: se ao desarrolhar jorra um vinho de cor mais envelhecida, cor de tijolo, certamente ele está com problemas; se é um pinot noir mais clarinho, está correto, é uma característica da uva.
Enfiando o nariz pela primeira vez na taça – sem girar a taça, afunde a napa no seu interior. Estão ali os primeiros aromas. Guarde-os na memória. A comparação depois vai ser bacana e instrutiva.
Girando a taça – esta é a parte mais divertida e absurdamente irritável do processo. Depois de algum tempo se torna um vício – e você vai cansar de ver gente girando até copo de água sem qualquer serventia. Mas é preciso cuidado, na empolgação podem sobrar gotas de vinho na roupa do vizinho (aí sim o sujeito pode ficar possesso, principalmente aqueles executivos de camisa branca em almoço de negócios). Para que serve este ritual? Ele faz com que o ar se misture com a bebida, fazendo as substâncias aromáticas (que são químicas) se volatizarem e serem percebidas com maior intensidade. Muitos vinhos melhoram e se modificam depois de um tempo abertos e devidamente chacoalhados na taça, resultado deste processo.
Mergulhando o nariz pela segunda vez na taça – agora compare. Muito provavelmente os aromas mudaram. Se antes só aparecia uma flor, uma frutinha de leve, agora pode ser percebida outras camadas, como frutas mais maduras, café, tostados, chocolate, especiarias, uma sensação meio terrosa, algo mineral… sei lá o vinho que está na taça. Mas que muda, muda. E qual a graça? A graça está exatamente em sentir esta diversidade de aromas, que podem ser tão intensos e agradáveis – quase infinitos – que adiam o momento de levar o vinho à boca. O importante é o seguinte: associe os aromas com coisas que você conhece, que são do seu universo. Muita gente fala em aroma de cassis, por exemplo, sem nunca ter se aproximado da frutinha. Os aromas são parte do prazer e da viagem que o vinho propicia. Você está pagando, e geralmente caro, pela bebida, por que não usufruir todas as variações que ela pode oferecer?
Finalmente, bebendo – degustar é beber com atenção. Passadas as etapas descritas acima, que não podem ser repetidas pela refeição inteira, é claro, vem a prova dos noves. Muitas vezes a cor está adequada, os aromas agradáveis e quando o vinho vem para a boca alguma coisa não funciona. Você sente um amargor (explicação técnica irritante: esta sensação é percebida no final da língua, próximo à garganta); ou a boca fica seca – são os tais dos taninos que não estão bem resolvidos (parecido com aquela sensação de comer banana verde); ou ainda a boca esquenta muito (é o excesso de álcool); a acidez está desequilibrada (outra informação irritante: é percebida nos cantos da boca e pela salivação – quanto maior, mais ácido é o vinho). Até o corpo da bebida pode ser avaliado (se tem um volume de boca leve, médio ou pesado. Muito abstrato? Compare o volume de um leite integral e outro desnatado: é por aí). Mas se o vinho for bom você vai confirmar aqueles aromas na boca, e até descobrir novos perfumes. O vinho está redondo e macio, tem uma boa estrutura (está tudo equilibrado, as sensações de taninos, acidez, álcool), o paladar é agradável e permanece por mais tempo, mesmo depois de engolido (vou evitar termos como retrogosto, por que aí é passar dos limites da irritabilidade, não é não?). Enfim, deu tudo certo. Uma garrafa, talvez, vai ser pouco…
Conclusão? Então é o seguinte, contrariando Fernanda Young, o sujeito não cristaliza idéias prontas ao se tornar um entendido em vinho. Pelo contrário, ele põe à prova cada garrafa que experimenta, exatamente por desconfiar de idéias prontas. Você tem de comparar, formar um arquivo de sensações e de lembranças. E tirar proveito disso. Um mesmo vinho aprovado hoje pode não estar bom na próxima safra. Não é como a cerveja, que a Fernanda Young declarou preferência na entrevista (já foi ler? Vale a pena), que, sendo da mesma marca, é sempre a mesma bebida, lata após lata.
Gente irritante – É claro que está coalhado de gente chata e esnobe – enófilo já é uma palavrinha encrencada – que se diz entendida de vinho após ter feito aquele primeiro cursinho e bebe de nariz empinado. Iniciante geralmente não tem muita noção mesmo. Fica parecendo aquele calouro de psicologia, que analisa até o movimento que você faz para trancar a porta do carro, ou aquele sujeito que faz um curso de cinema e não consegue mais se divertir assistindo um filme.
Para finalizar, vamos combinar uma coisa: há momento para tudo nessa vida. Ninguém vai degustar vinho em uma festa, a não ser que queira parecer ridículo, ou então esteja ao lado da Fernanda Young. Há espaço para todos, sem preconceito. É como diz aquele clássico do cancioneiro popular: “Cada um no seu quadrado”. Assista ao vídeo. Mais irritante, impossível!
Parabéns!Há muito tempo não lia uma “crítica” tão gentil às colocações de Fernanda e ao mesmo tempo super instrutivas,foi a melhor explicação q já tive sobre vinhos .Valeu.
Fernanda quem ??? Nunca ouvi falar ! Santa ignorância Batman !!!
Caro Roberto,concordo completamente com o seu comentário!Mas para quem diz: “É ótimo falar besteira”(*),é o mínimo que pode-se esperar de uma pessoa assim!(*) Título da reportagem
Roberto, muito instrutiva esta sua narrativa da anáilise sensorial de vinhos.Lúdica para nós, irritante para outrem. Abraços de luz Álvaro Cézar Galvão
http://divinoguia.blogspot.com
Gostei muito da resposta gentil e inteligente às colocações da Fernanda, ao contrário das grosseiras e pouco inteligentes de alguns leitores.
É meio irritante ler tudo isso, mas li…Só que me lembrei de que quando criança observava adultos que efetuavam um ritual parecido com a cachaça, a branquinha..eles olhavam a contra luz, cheiravam, suspiravam e depois sorvava a menina guela abaixo. Depois disso entendo que rituais devam ser interessantes, mas só vinho parace esnobe, pirncipalmente coma grande maioria da patuleia brasiliense querendo ser europeu.
Caro Gerosa, brilhante resposta para uma agressão descabida e sem nexo. Abraços, Arthur
SIMPLESMENTE A-D-O-R-E-I!
Li este post e alguns comentários, não sei bem porque. Contudo depois de tê-lo feito, minha mente somente conseguia lembrar do Seneca (Sobre a brevidade da vida). Que besteirol o “cult” e o “trash” discutindo sobre vinho. Acho que o difícil é saber quem é o “cult” e quem e o “trash”.
Sabe quem é o verdadeiro nobre nesta coisa toda? Aquele lavrador que planta a videira, cuida dela com amor e reverência, tem as mãos marcadas pelo ofício e sabe da terra, da uva e do vinho e, sem fazer nenhum curso “sente” o vinho. Este é o aristocrata do vinho. Os demais (enólogos, enófilos ou o que seja) fazen um teatro patético, com aquela pantomima de “cheirar a rolha”, que deve ser motivo de riso para o lavrador-vinicultor. Tenho a impressão que o lavrador deve sorrir bondosa e indulgentemente ao ver uma “sofisticada” publicação sobre vinhos em revistas de luxo. Pena e indulgência é o que ele deve sentir.