Publicitário e fotógrafo com experiência na França, onde conheceu e se apaixonou pelos chamados vinhos naturais, Marco Danielle se tornou vinhateiro na volta ao Brasil. Começou pequeno, artesanal, mas teve a coragem de enviar sua primeira safra para a crítica internacional inglesa e ganhou seu maior troféu: um parecer favorável do rótulo Tormentas e Minimus Anima, de Steven Spurrier, famoso crítico inglês da revista britânica Decanter (leia as críticas no final da entrevista).
Marco Danielle intitulava-se artista-vinheteiro no início (fato que critiquei logo de início, aliás). A justificativa do autor: “Quando dei ao meu projeto um teor artístico, esperava bem mais uma licença poética… Pelo contrário, a ideia soa pedante. Paciência, não se pode acertar sempre, nem agradar sempre.” Teorias à parte, eu acho que pega mal. É o vinho que diz sem tem arte ali ou não, e não o autor. Simplificou o slogan para vinhos de autor.
Em abril de 2006, Danielle me concedeu uma entrevista por e-mail. Muito mosto rolou de lá para cá, incluindo o lançamento recente do Prelúdio, mas acho que é válida sua publicação hoje, para ver as coisas sob a perspectiva do tempo. E checar se algumas de suas ideias resistiram ou evoluíram com o tempo:
Por que seu vinho é produzido?
Para manter no Brasil parte da riqueza que escoa para o exterior das mãos de uma classe privilegiada com o poder aquisitivo necessário para buscar numa garrafa de vinho, além de um néctar natural, um sonho e uma história.
Quem tem de julgar se o vinho chegou ao status de arte é quem bebe e não quem produz, não concorda?
Respeito esse ponto de vista, sem contudo abrir mão do meu argumento. Já pensou se passássemos pelo crivo da razão tudo que se afirma na publicidade? E o sonho, onde fica? E a luta pela sobrevivência? Melhor, respondo com uma pergunta: uma obra em música erudita pode ser menor, e pode ser grandiloquente. Mas você julgará que uma obra menor não é arte? Para mim há erudição e virtuosidade no vinho. Assim como há sertanejos.
Quando dei ao meu projeto um teor artístico, esperava bem mais licença poética… Pelo contrário, a ideia soa pedante. Paciência, não se pode acertar sempre, nem agradar sempre.
O que me aborrece sim, confesso, é que alguém como eu, que poliu a alma com Barthes e Pré-vert; que viajou meio mundo atrás do saber; que comunica-se em cinco línguas – três das quais com fluência; que viveu exclusivamente da arte e da escrita… deva ser tachado de pretensioso por “autointitular-se” artista. Num país como esse! Justo aqui, uma nação faminta onde ladrões se autointitulam políticos, um artista se intitular vinhateiro ou um vinhateiro artista, irrita.
Alguns tintos apresentam cores menos intensas. É proposital?
Amigos enólogos me dizem que aumentaria muito minha profundidade da cor usando enzimas. Mas para quê? Não há preço que pague a magia da natureza pura, em sua expressão mais honesta. Desconfie de vinhos untuosos. A glicerina e a goma-arábica são usadas em larga escala. Mas como disse o Hubert de Montille em Mondovino, “as pessoas gostam de ser enganadas.” Mas a mais das vezes as falhas mais gritantes não vêm da maquiagem. Vêm da matéria-prima ruim. Um vinho pode ser natural e ruim.
Já a merlot, tem se revelado a pérola das viníferas brasileiras. Por quê? Porque atinge o pico de maturação por volta de um mês antes. Portanto, concentremo-nos nos nossos merlot, que permitem desenhar vinhos nos dois estilos.
Ainda assim, desculpe a pretensão, mas devo concordar com o Spurrier que meu Tormentas 2004 representa uma finíssima expressão de cabernet sauvignon. Caso contrário, não o teria lançado. Sinto profundamente que a ocasião, em cômputo geral, não tenha permitido a você compactuar desta mesma impressão.
Você não acha que o preço, 80,00 e 120,00 reais (atualização, agora está em 160 reais), está fora dos padrões do vinho nacional?
Meu vinho também está fora do padrão brasileiro. Basta observar o que temos aqui. Mas até quando limitaremos inexoravelmente qualquer vinho brasileiro a um padrão baixo? Por que o Spurrier acaba de dar nota 18/20 para o meu vinho, e rasgar-se em elogios sobre qualidades que aqui não conseguimos decodificar? O que estaria acontecendo? Seria ele um incauto, ou um amador? Concordo que precisamos baixar preços, e estamos nos organizando para isso. Mas se a predisposição da crítica nacional continuar sendo de depreciar os esforços locais… sinceramente, pouca diferença fará se o preço for R$ 20 ou R$ 120,00, pois sempre parecerá caro. Admito novamente, porém, que ainda há pouquíssimos vinhos tintos brasileiros bons.
O que achou das primeiras críticas aos seus rótulos?
A imprensa e os críticos locais não entenderam a proposta conceitual, fortemente simbólica, de fortalecer, através de um preço alto para um vinho nacional raro, a autoestima do fazer brasileiro. Tormentas Premium foi prejudicado nas únicas duas avaliações anteriores que aconteceram no Brasil. O valor irrita tanto que perde-se o senso da fruição pura e simples deste agradável vinho. Uma pena. Sendo assim, prefiro tirá-lo da oferta para venda. Não tanto pelos clientes, pois ninguém é obrigado a comprar o que não quer. Mas por perturbar tanto a crítica. Há uma dificuldade aparente de entender que um vinho lapidado à mão, um verdadeiro serviço de joalheiro, não pode ser analisado como qualquer outro. Por outro lado, também, de nada me adianta que apenas o Spurrier consiga decodificar seus valores. Se o que está acontecendo continuar se repetindo, em breve não haverá mais qualquer razão para organizar apresentações de imprensa.
Tenho que admitir que prego no deserto, pois ainda temos pouquíssimos bons vinhos. Alguém tinha que começar um dia, servindo de bucha de canhão no primeiro tiro dessa iminente revolução.
Duas críticas do editor da Decanter, Steven Spurrier
Minimus Anima 2005 Cabernet-Sauvignon & Alicante Bouschet:
“Fina e profunda cor rubi-aveludada, muito jovial e boa viscosidade nos lados da taça. Nariz de frutas vermelhas recém esmagadas, elegante, cheio de fruta sem exuberância excessiva. Maduríssimas frutas vermelhas no palato, bons taninos naturais que dão a impressão de leve uso de carvalho, final firme e fresco, balanceado com a acidez natural. Um vinho muito bem feito; com fina fruta natural e um bom senso de individualidade. Degustado sem setembro de 2007.”
Tormentas Premium 2006 Pinot Noir, Tannat e Merlot
“Cor de negro rubi-aveludado; rico visual luxuriante com densas pernas nas paredes da taça. No nariz, finas frutas de bosque maduras e concentradas, dominando cerejas negras combinadas com certa terrosidade natural. No palato, excelente concentração de uvas muito maduras em soberbo balanço com a acidez natural. Grande densidade geral e pureza de fruta dominada por cerejas negras. Um vinho vivaz, com poder e elegância. São ambos vinhos refinados [Minimus Anima 2005 e Tormentas Premium 2006], feitos com evidente paixão e insistente qualidade.”
Excelente post Sr. Gerosa.Bastante informativo. Eu nao conhecia o Danielle e seus vinhos, e fiquei bastante curioso e com vontade de toma-los. Dai posso tirar minhas conclusoes e ver se gosto da “arte” feita pelo Monsieur Danielle.Marcelo
Olá,parabéns pela entreveista, achei realemnte muito interessante e estou fazendo uma monografia sobre vinho e cerveja. Uma das respostas de Danielle me ajudou muito.Obrigada !beijos