“Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição de costume, e como eu lhe disse que a vida tanto podia ser ópera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou; “A vida é uma ópera e uma grande ópera (…)”
Capítulo IX, A ópera, de Dom Casmurro, Machado de Assis
O Chianti é aquele tipo de produto que dispensa identificação. É, há muito tempo, sinônimo de vinho. A história de Dom Casmurro se passa entre 1857 e 1875. O Brasil era uma monarquia, sob a tutela de Dom Pedro II, e Machado de Assis descreve a cena sem ter de explicar ao leitor que Chianti é um vinho. Mais do que isso, um vinho com origem, no caso italiano.
Além de reconhecimento desde o tempo das polainas, o Chianti também tem uma fama irrefutável: é campeão na hora de combinar com comida. Não por acaso o Chianti do Machado está associado ao jantar. Sua estrutura e alta voltagem na acidez conferem um aposto sempre presente: “um vinho de comida”.
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A sangiovese nasceu para o Chianti
O Chianti, uma criação do Barão de Ricasoli lá no ano 1872, já teve altos e baixos. A fórmula original permanece a espinha dorsal do vinho. Uso intensivo da uva nativa sangiovese e parcelas de uvas tintas internacionais e brancas (cada vez menos). Nos últimos 30 anos o padrão de qualidade do Chianti mudou. Na verdade, o vinho italiano melhorou. “A renovação do vinho italiano de qualidade começou, na década de 90, na Toscana, mais especificamente na região do Chianti ”, informa o crítico e consultor Jorge Lucki. A criação de consórcios que regulamentam e controlam as regras da região tem um papel importante nesta qualificação.
Chianti e Chianti Classico
Existem duas áreas de Chianti.
Uma ocupa o miolo da Toscana, fica entre Siena e Florença, e é denominada de Chianti Classico. A outra, chamada apenas de Chianti, está distribuída em 7 subregiões em torno do Chianti Classico. São elas as subáreas geográficas de Colli Aretini, Colli Fiorentini, Colli Senesi, Colline Pisane, Montalbano, Rufina e Montespertoli: elas estão identificadas com as cores e legendas no mapa, o Chianti Classico compreende o espaço sem cor no centro.
Estas duas vertentes do Chianti têm mais semelhanças que diferenças.
Chianti Classico segue as regulamentações do Consório do Chianti Classico, exige um mínimo de 80% de uva sangiovese na garrafa e permite 20% de outras uvas tintas, como canaiolo, colarino, e as internacionais cabernet sauvignon e merltot (não permite mais o uso de uvas brancas) e é identificado pelo selo do Galo Nero (a historinha, meio manjada, está abaixo).
As outras regiões delimitadas do Chianti são regidas pelas normas do Consóricio Vino Chianti, exibem o nome das subáreas no rótulo, diferem de estilo entre elas por razões climáticas, de solo e proximidade ou não do mar e determinam o uso de no mínimo 70% de sangiovese no vinho e autorizam a mescla de até 30% de outras uvas, sendo 10% no máximo de uvas brancas (cada vez menos usadas, diga-se de passagem) e tintas nativas e internacionais, as mesmas canaiolo, corolino, cabernet sauvignon e merlot (estas duas últimas no máximo 15%).
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A região sob a regulamentação do Consórizio Vino Chianti abrange as províncias de Florença, Siena, Pisa, Pistoia, Prato e Arezzo. São 3.600 produtores que cultivam mais de 15.500 hectares espremendo uvas e engarrafando mais de 800.000 hectolitros de vinho, ou seja quase 110 milhões de garrafas ano.
O Classico e o Gallo Nero
Como todo vinho com muita história, o Chianti carrega consigo a do Gallo Nero (se você já conhece pode pular este parágrafo, afinal o tempo do leitor vale ouro). Diz a lenda que para resolver um impasse territorial entre Florença e Siena decidiu-se substituir uma guerra sangrenta entre as duas cidades por uma disputa entre dois cavaleiros. Assim que o galo cantasse pela manhã os dois cavaleiros sairiam de sua localidade e o ponto de encontro determinaria a extensão do território da região de Chianti pertencente a cada cidade. Os moradores de Siena escolheram um galo branco e alimentaram a ave para o canto matutino ser alto e forte. Os florentinos, experts na arte da manipulação (se fosse hoje estariam espalhando fake news pelo WhatsApp), selecionaram um galo preto e não deram qualquer migalha para ele comer. No dia do desafio, o galo preto, magro e esfomeado, começou a cantar antes mesmo de o sol nascer, em busca de alimento. Seu colega branco, satisfeito e gordo, só despertou mais tarde. Resultado: o cavaleiro florentino saiu a galope com algumas horas de vantagem sobre seu desafiante e os dois se encontram a apenas alguns metros de distância dos muros de Siena, proporcionando à Florença o domínio da região do Chianti. Daí o uso do selo do Gallo Nero nos vinhos certificados da região.
Viajando pelos vinhedos do Chianti Classico
A propósito, se você planeja ir à Itália e o vinho faz parte do seu roteiro, a Toscana é o seu GPS e a região do Chianti Classico seu destino para o enoturismo. A opção mais prazerosa e esperta para quem viaja de Roma de carro e pretende alcançar Florença é enfrentar a sinuosa estrada vicinal S222, também conhecida como Via Chiantigiana. Você percorrerá lentamente caminhos cercados de vinhedos, oliveiras, vinícolas e pequenos recantos, e vai ganhar uma experiência única: uma imersão nos vinhos e na gastronomia italiana. Afinal, quem tem pressa quando a paisagem ao redor é um cenário de filme e o tempo é medido em taças de vinho e em lentas garfadas em pratos da culinária local?
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Chianti Riserva
O Riserva é a máxima expressão da variedade nativa sangiovese, uma uva de colheita tardia. É um vinho de alta qualidade, complexo e de boa estrutura. No geral, um vinho de guarda, em oposição aos Chianti mais simples. Aqui a sangiovese é mais séria. Seu caldo ganha complexidade e diferenciação pela intensidade no sabor e graças ao processo de microoxigenação e envelhecimento em barricas e na garrafa. Como regra um Riserva passa no mínimo de 2 anos entre barrica e garrafa apurando seus sabores e aromas. No nariz apresenta notas de frutas vermelhas ou escuras, aromas de violetas e exibe um final longo. Sua acidez presente lhe confere uma caráter único para um vinho de guarda: aquele frescor que é marca registrada do Chianti. É um vinho que cresce com a comida, e a comida se beneficia com o vinho.
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Sete Chianti de sete regiões e sete safras
Uma degustação vertical (o mesmo tipo de vinho, no caso o Riserva, mas de anos e produtores diferentes) conduzida por Luca Alves e Jorge Lucki foi a prova dos noves de como as safras e as regiões interferem no estilo, no sabor e na evolução do Chianti Riserva. A prova, foi antecedida de uma aula muito rica de Luca Alves sobre as características de cada região.
Luca fala português com um forte sotaque lusitano. Confesso que este detalhe criou uma confusão mental neste blogueiro de quando em vez. As taças perfiladas exalavam o perfume da Toscana, mas o ouvido atento nos comentários sobre “o aire mais fresco”, “os aromas flôráisss” , “os produtôres” por um instante me remetiam para Portugal e jurava que ia dar um gole num vinho do Douro. Por pouco achei que estávamos a falar da touriga nacional e não da sangiovese. Mas o vinho sempre me trazia de volta à Toscana.
Todas as garrafas foram decantadas duas horas antes, o que ajuda muito, mas raramente corresponde ao hábito do consumidor, vamos combinar. Como regra geral, não tinha vinho ruim sobre a mesa. Coincidência ou não, meus preferidos foram aqueles que aportavam 100% da uva sangiovese na garrafa e a região mais badalada, Rùfina (se pronuncia com acento agudo no u e não como geralmente falamos, com uma leve entonação aguda no i), cumpriu sua sina e foi meu vinho preferido. As informações sobre a qualidade das safras foram fornecidas por Lucki durante a prova. Mas se a ideia era conhecer a variedade, a missão foi bem-sucedida.
Terra del Fico – Chianti Colli Senesi DOCG Riserva 2015
Subregião: Colli Senesi
Uvas: sangiovese (85%), colorino (5%), canaiolo (5%), merlot (5%)
Produtor: Ficomontanino
http://www.ficomontanino.it/
safra: 2015 é considerada uma ótima safra, choveu na hora certa.
na taça: ainda um pouco fechado no nariz, fruta mais fresca, tanino macio, o mais jovem do painel, tem potencial de desenvolver com o tempo.
Pierazzuoli – Chianti Montalbano DOCG Riserva 2014
Subregião: Montalbano
Uva: 100% sangiovese
Produtor: Cantagallo
www.tenutacantagallo.it/tenuta-cantagallo/
safra: 2014 foi um ano complicado e chuvoso, exigindo maior esforço do enólogo.
na taça: sangiovese puro-sangue, estava soberbo. Um aroma mais resinoso, fruta mais madura, tanino macio, final saboroso. Fácil de gostar. Entre os sete do painel, um dos meus três preferidos
Moro di Pava – Chianti Colline Pisane DOCG Riserva 2013
Subregião: Colline Pisane
Uva: 100% sangiovese
Produtor: Pieve de’Pitti
www.pievedepitti.it
safra: 2013 é outra boa safra na Toscana.
na taça: outro 100% sangiovese. Aqui a fruta é menos sutil e mais concentrada, a acidez está menos presente e deixa o álcool mais evidente. Não ficou no pelotão de frente.
Podere dell` Anselmo Ingannamatti – Chianti Montespertoli DOCG Riserva 2012
Subregião: Montespertoli
Uvas: sangiovese, colorino, cabernet franc
Produtor: Farconi Fabrizio
www.forconi.net
safra: 2012 foi uma safra mais quente
na taça: mais calor geralmente traz um fruta mais doce, maior concentração de álcool. O tanino está mais agressivo, a fruta pareceu mais cozida na boca.
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Il Palazzo – Chianti Colli Arentini DOCG Riserva 2011
Subregião: Colli Arentini
Uvas: sangiovese (95%), outras uvas nativas (5%)
Produtor: ll Palazzo
www.tenutailpalazzo.it
safra: 2011 é outra safra quente.
na taça: A sangiovese domina, bom corpo e concentração de fruta equilibrada com acidez presente e marcante. Belo vinho. Fiquei pensando numa massa com molho mais forte. Passado um certo tempo, vem um café no nariz.
Colognole del Don Chianti Rùfina DOCG Riserva 2009
Subregião: Rùfina
Uvas: sangiovese (100%)
Produtor: Colognole
www.colognole.it/
safra: considerada excelente
na taça: outro vinhaço 100% sangiovese, com maior estágio em barrica. O mais diferentão do painel, com o floral consistente e o tempo fazendo bem aos sabores. Madeira bem integrada. O vinho com boa estrutura. Boa evolução, a melhor do painel. O Chianti Rùfina é um vinho mais ao norte das subregiões do Chianti e também de maior altitude. E daí? Quanto mais alto o vinhedo melhor a acidez da sangiovese, capiscce?
Ugo Bing – Chianti Colli Fiorentini DOCG Riserva 2006
Subregião: Colli Fiorentini
Uvas: sangiovese (75%), canaiolo (20%), colorino (5%)
Produtor: Fattoria di Fiano
www.ugobing.it/
safra: 2006 é considerada uma supersafra na Toscana.
na taça: O rótulo mais antigo desta vertical, no entanto a evolução de cor, aromas e sabor não era tão evidente, e não produzia os efeitos esperados. Quem sabe era um jovem senhor imaturo?
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