Em Mondovino o diretor Jonathan Nossiter traça um painel onde os grandes produtores são mostrados como vilões e os defensores do terroir tratados como heróis de um mundo cão: o dos negócios do vinho.
Para o diretor Jonathan Nossiter, o documentário Mondovino, disponível em DVD, é uma declaração de amor ao vinho. Enólogo formado em Nova York, o diretor americano, que cresceu entre a França, a Itália e a Índia, entende do assunto e montou um extenso painel onde o personagem principal quase não aparece. Curioso. Fala-se muito de vinho nos longos 131 minutos de fita principal, bebe-se pouco, porém, durante o filme.
Nossiter rodou três continentes entrevistando vinicultores, enólogos, críticos e negociantes tendo como pano de fundo a tentativa da poderosa e tradicional família Mondavi (um dos vilões do filme), dos Estados Unidos, adquirir terras do vinicultor Aimé Guibert (um dos heróis), na região de Languedoc, na França. É assim, basicamente que o filme é montado. Alternando depoimentos de personagens da grande indústria com o de vinicultores que defendem um método mais tradicional e puro de vinificação e produção desta bebida ancestral — os chamados defensores do vinho de terroir.
E o recado é claro. A globalização está uniformizando o gosto da bebida ao padrão americano de consumo. E assim como os gauleses da história em quadrinhos não permitiram se dominar pelo império romano, vinicultores tradicionais, não por acaso franceses, resistem a esta padronização que estaria matando a diversidade e a tipicidade deste suco de uva fermentado. O mundo do vinho — como todo grande negócio — é um mundo cão. Nossiter, com sua câmera trêmula, assume então o papel de Asterix na defesa rótulos de produtor e usa a montagem como artilharia nessa guerra. A edição, um tanto maniqueísta, reduz a abordagem e a discussão do tema. De um lado estão os bons; do outro, os maus. Não há meio termo. É tudo tinto ou branco, não há espaço para o rosé.
Batalha dos vinhedos
Os produtores que encaram o vinho como um negócio — o que inegavelmente é — são mostrados como os responsáveis por uma tragédia nas vinhas. Aqueles que pregam um respeito ao terroir, ao tempo que o vinho necessita para revelar seu potencial e outras regras que não atendem o imediatismo de consumo atual, são os defensores da pureza. "A Borgonha é o campo de batalha com a resistência de um lado e os colaboracionistas de outro", comenta um personagem do filme comparando a II Guerra a uma virtual "Batalha dos Vinhedos".
Nossiter sabe como ninguém arrancar de seus entrevistados frases reveladoras. A família Frescobaldi tem saudades dos tempos do Mussolini. Os Etchart, produtores do Yacochuya, são preconceituosos com os descendentes de índios argentinos ("são preguiçosos"). Roberto Mondavi (morto em 2008) é arrogante a ponto de declarar que "Daqui a dez, quinze gerações, seria ótimo ver nossos herdeiros produzindo vinho em outros planetas." E, por fim, o consultor de mais de 100 vinícolas ao redor do mundo, Michel Rolland, ri sem parar nas entrevistas e receita a toda adega que presta consultoria um único conselho: "Tem de micro-oxigenar o vinho". Os personagens falam por si. Não era necessário apresentar os grandes produtores — responsáveis aliás pela popularização e elevação da qualidade do vinho ao redor do mundo — como vilões em enquadramentos mais duros, closes que deformam as imagens e cenas de assessores de imprensa servis, ambientes suntuosos com grades barrando a entrada da reportagem. Visivelmente há uma forma de filmar o establishment do vinho e outra, mais suave, ensolarada, para registrar a imagem do pequenos ou tradicionais vinicultores da Borgonha, da Sardenha ou mesmo no Vale do Rio São Francisco, no Brasil.
Diálogo revelador
Um pena que seja assim. Em um dos melhores momentos do documentário, Hubert De Montille, proprietário de vinhedos em Volnay e Pommard, na Borgonha, e sua filha, Alix, que na ocasião trabalhava como vinicultora na casa Ropiteau, subsidiária do gigante da Borgonha Jean-Charles Boisset, travam um diálogo que sintetiza as ideias defendidas pela edição do documentário, mas sem maniqueísmo. Dispensando o recurso de confrontar dois universos opostos, o que aflora é um conflito familiar que se desenrola diante do espectador até o ponto de a filha admitir que os valores que ela acredita não são respeitados e que vai deixar a empresa:
Alix: "Os vinhos corrompidos nos iludem."
Hubert: "São vinhos traiçoeiros."
Alix: "São vinhos que iludem."
Hubert: "Eles nos iludem. E logo nos deixam na mão."
Alix: "A verdade é que são vinhos ‘traidores’."
Hubert: "Mas o mundo moderno está habituado a isso. Este mundo gosta de ser enganado."
Se a intenção do documentário era provocar a discussão entre a parcela da plateia que entende do que se trata aquela conversa toda, o objetivo é cumprido. Mondovino ficará para a história como um filme mais comentado do que visto, principalmente entre os enófilos, e em espaços como este, dedicados ao vinho. Um espectador menos avisado, porém, corre o risco de sair da sala de cinema com a impressão de que um Rothschild, um Mondavi, ou qualquer vinho elaborado pelo consultor Michel Rolland ou indicado pelo crítico Robert Parker deva ser evitado. Aí mora o perigo. O filme mirar um alvo e acertar outro.
Mondovino
Direção: Jonathan Nossiter
(Mondovino, Argentina/Itália/França/EUA, 2004).
FRASES
Nossiter tem um dom inquestionável, seus personagens revelam o que têm de melhor — e de pior — frente às câmeras. Aqui uma seleção de boas tiradas de Mondovino:
“Queremos iniciar uma dinastia. Daqui a dez, quinze gerações, seria ótimo ver nossos herdeiros produzindo vinho em outros planetas. Seria divertido: ‘Scott, teletransporte um vinho de Marte para mim.’”
Michel Mondavi, Robert Mondavi (Napa, Califórnia, EUA)
“O vinho morreu. Sejamos claros, o vinho está morto.”
“Hoje em dia temos os enólogos no lugar dos poetas”
Aimé Guibert, Daumas Gussac, Languedoc
“Borgonha é o campo de batalha com a resistência de um lado e os colaboracionistas de outro”
Hubert De Montille, Volnay, Borgonha
“Neste sistema de vinhos divido em castas estratificadas, dominadas por elites e reacionários, Robert Parker trouxe a mentalidade americana, um ponto de vista democrático.”
Robert Parker, crítico de vinhos