“A África do Sul não é só pinotage”, John Platter, critico de vinhos
e autor do guia John Platter’s South African Wines
A Copa do Mundo na África revelou ao mundo um estádio belíssimo, o Soccer City, popularizou uma traquitana ensurdecedora e irritante, a vuvuzela, e mostrou ao mundo que no extremo sul do continente africano faz frio. Muito frio, como lembram os cronistas esportivos a todo instante. Nossos enviados parecem surpresos com esta obviedade climática, afinal as terras que ficam abaixo do paralelo 30 esfriam mesmo no inverno. E é neste trecho da África, na mesma faixa onde crescem as parreiras da Argentina e da Austrália, que são cultivadas as parreiras sul-africanas. Os vinhedos próximos à Cidade do Cabo registram temperaturas semelhantes ao do Napa Valley, na Califórina. No país da vuvuzela, o vinho também faz barulho!
O país não é exatamente um iniciante na produção de vinhos. A história vitivinícola sul-africana pode ser simplificada em três fases distintas.
Início. Um Novo Velho Mundo – As primeiras vinhas foram plantadas em meados do século XVII, na região de Constantia, perto do Cabo da Boa Esperança. Os holandeses lá instalados tiveram uma mãozinha de refugiados franceses conhecedores da viticultura. Os vinhos brancos de sobremesa de Constantia, elaborados com a uva moscatel, chegaram a ser objeto de desejo das cortes europeias neste período. Este início precoce torna a África do Sul uma contradição em termos: trata-se de uma região do Novo Mundo com mais de 350 anos! A decadência do setor veio com o ataque da filoxera (sempre ela), a praga que dizimou, em 1886, boa parte das videiras ao redor do mundo. O replantio priorizou a produção em grandes quantidades, mas o volume bateu na parede da recessão inglesa, os maiores importadores do vinho sul-africano daquele tempo.
Nos tempos das cooperativas e do apartheid – O início do século XX foi marcado, assim, pela quantidades de uva por cacho e não pela qualidade da fruta. Numerosos fazendeiros vendiam suas colheitas para cooperativas e atravessadores poderosos que controlavam os preços. Em 1918 esses fazendeiros, com ajuda do governo, criaram uma cooperativa própria, a Ko-operative Wijnbouwers Vereniging (KWV), que durante anos regulamentou e controlou preços e tinha plenos poderes sobre a indústria do vinho na África do Sul. Hoje a KWV se tornou uma empresa privada, com rótulos próprios. Esta situação, agravada pelo boicote aos produtos do país em represália ao apartheid vigente, tornou o vinho sul-africano desconhecido fora do país.
O renascimento do vinho de qualidade – O cenário começa a mudar em 1994, com o fim do regime do apartheid. Uma política agressiva de inovação e investimento em tecnologia, a aposta em diferentes terroirs para uvas internacionais, além do charme de uma uva nativa (a pinotage) tornou o país em um grande produtor de vinhos de qualidade em poucos anos. Atualmente são mais de 500 vinícolas privadas em funcionamento, o dobro do início do século.
Apesar de a pinotage ser uva emblemática as tintas mais produzidas são cabernet sauvignon, shiraz, merlot, seguida da pinotage. (A pinotage é uma variedade africana originária do cruzamento das uvas francesas pinot noir e cinsault, conhecida no país como hermitage.) As brancas dominam 55% da área cultivada (dados de 2006), as mais plantadas são: chenin blanc, colombard (para brandys), chardonnay e sauvignon blanc.
John Platter: o Robert Parker da África do Sul
Em 2004, o jornalista John Platter – o crítico de vinhos mais influente da África do Sul – deu uma entrevista a este redator. Ele á autor do guia John Platter’s South African Wines, com mais de 1 milhão de exemplares vendidos (conheça outros guias na seção Biblioteca). Lançado em 1980, o guia é uma referência no mercado e aceito como verdade pela crítica internacional. Ter um rótulo bem cotado no guia de Platter é um carimbo no passaporte internacional de uma vinícola.
Ninguém melhor para introduzir o leitor deste blog no mundo do vinho sul-africano do que seu crítico mais bem informado. Mesmo passados seis anos da entrevista, sua visão sobre a produção, as tendências e características do vinho da África do Sul continuam atuais. Abaixo os principais trechos:.
Como o senhor define o estilo do vinho sul-africano?
Nós fazemos vinhos há 350 anos. Mas de uma maneira mais séria somente há 10 ou 15 anos. O estilo sul-africano está entre o moderno vinho do novo mundo, como o australiano, gratificante e imediato, e o clássico vinho do velho mundo europeu, mais austero, complexo, com capacidade de envelhecimento na garrafa.
Como são julgados os vinhos em seu guia?
São 10.000 vinhos analisados por ano, durante sete meses. Mas é um trabalho de equipe, não faço isso sozinho (Nota: na edição de 2008 são quinze colaboradores). São degustados vinhos do ano e de safras passadas, para saber como a qualidade está evoluindo. Eles são classificados numa escala que vai de zero a cinco estrelas e somente 17 vinhos recebem a cotação máxima .
O vinho sul-africano evoluiu muito desde o lançamento da primeira edição de seu guia, em 1980?
A mudança desde 1980 é tremenda. Todo ano se verificam melhorias. Os aperfeiçoamentos tecnológicos foram imensos. Um dos exemplos de como a tecnologia tem ajudado nesta evolução é o uso de fotos aéreas infravermelhas tiradas das plantações durante a colheita, o que permite monitorar quais as uvas certas para colher no meio do vinhedo. São refinamentos que vieram com o tempo. Mas não aprendemos rápido o suficiente. A mudança tem de ser feita primeiro nos vinhedos, para produzir frutas melhores, mais limpas, maduras e puras. A qualidade do vinho é obtida primeiro nos vinhedos, antes da vinificação.
A pinotage é a principal uva do país?
A pinotage é reconhecida como a uva que só nós temos. É uma questão de orgulho nacional. Mas se podemos dizer que a Argentina é malbec, a África do Sul não é pinotage. É apenas uma entre as muitas variedades que produzimos, e uma variedade muito controversa, que gera uvas de má qualidade se não forem bem cuidadas, pois têm uma certa rusticidade. Por isso, temos produtores apaixonados e outros que odeiam esta cepa. Quando misturada a outras uvas, o que chamamos de Cape Blend, funciona melhor. Nós trabalhamos muito bem com outras uvas; fazemos shiraz brilhantes – temos um clima muito similar (ensolarado, quente) ao Vale do Rhone, na França, onde a fruta se dá melhor -, muito bons pinot noir, cabernet sauvignon, sauvignon blanc e chardonnay. O problema é que todo mundo tem shiraz e cabernet sauvignon e acaba-se produzindo vinhos muito parecidos.
Como se diferenciar e se destacar neste mercado?
Nós estamos trabalhando para produzir vinhos com tipicidade, que sejam originais, relevantes, com reconhecimento de seu terroir, que são as características de solo e clima de uma microregião que dão uma especificidade única a um vinho. Nós temos de passar por este estágio e evoluir. Se África do Sul não produzir um vinho com o seu terroir não vai conseguir se distinguir em relação a outros países, caso contrário vai acabar produzindo uma espécie de “coca-cola”.
Dê um exemplo de um produto onde o terroir faça a diferença.
Temos um sauvignon blanc produzido pela Steenberg, em Constantia Valley, em que os vinhedos estão localizados numa região de ventos muito fortes e onde há uma seleção natural que diminui o número de cachos na parreira. As frutas que resistem são mais maduras, melhores e produzem um vinho que tem uma característica única, conferida à sua casca por este mesmo vento. E a casca, vale lembrar, é o elemento da uva de onde vêem os principais aromas do vinho. Isso ninguém pode copiar. É um bom exemplo do que se pode extrair de um terroir.
Como era trabalhar na África do Sul no período do apartheid?
Muito difícil. Era terrível sentir que todo o mundo era contra você. Mais ou menos o que os americanos devem estar sentindo agora (a entrevista foi realizada na era Bush). Não havia competição. Com o fim do regime do apartheid e a entrada da África do Sul no mercado de exportação, mudaram as regras de produção e começaram as melhorias nos vinhedos e vinícolas do país. Mas no aspecto social ainda temos um sério desafio pela frente: só 1% da indústria está nas mãos da população negra e o governo, acertadamente, identificou que esta situação é insustentável por muito tempo. Eu trabalho num órgão do governo (South African Wine Trust ) que tem a missão criar condições para mudar esta realidade. (Último relatório da South African Wine Trust indicam que esta questão andou de lado e continua no mesmo patamar with less than 1% of the land under wine grapes under black ownership, management or control.)
Antes de ser colunista de vinhos, o senhor trabalhou na United Press como correspondente de guerra e testemunhou vários conflitos. O que o levou a mudar de área?
Fiz este tipo de jornalismo por 15 anos. A Guerra da Biafra, por exemplo, foi muito sofrida, ver pessoas com fome, matando-se umas às outras. Eu achei que eu não seria forte o suficiente para continuar o resto da minha vida nesta função. Cobrir uma guerra é uma experiência fisicamente muito intensa. Eu sempre gostei da idéia de ser um fazendeiro e trabalhar com vinho. Provar e escrever sobre vinho é muito criativo também, é tão criativo como tentar criar histórias dramáticas sobre a guerra.
O que é mais difícil escrever: uma coluna de vinho ou um artigo sobre a guerra?
Os dois são difíceis. São ambas experiências subjetivas. Você tem elementos objetivos para lidar na guerra e no vinho também. Mas o que você coloca no papel é o seu ponto de vista. E é muito difícil expressar sua verdade, especialmente no vinho, pois muita coisa sem sentido é escrita sobre o assunto. E muitos termos nada significam para a maioria das pessoas.
Além de crítico o senhor também é produtor de vinho. O que começou primeiro?
Minha carreira de crítico começou antes, só depois fui aprender a fazer vinho. Eu produzo uma pequena quantidade para consumo próprio. E comecei este trabalho para saber como é fazer vinho. Assim entendo melhor a bebida. Também aprendi uma coisa: é mais fácil ser crítico do que produtor.
Por quê?
Você passa a entender as dificuldades de um produtor. São milhões de detalhes que devem ser observados, no vinhedo e na vinificação. Escrever um livro também é difícil mas não é tão mágico e complicado como fazer um vinho e lidar com a natureza.
O que é mais gratificante: vender 1 milhão de exemplares de seu guia ou criar um vinho brilhante, com reconhecimento mundial?
Atualmente estou aposentado, e apesar de estar envolvido no guia faço outras coisas também. Mas se você me fizesse esta pergunta quando ainda estava completamente envolvido na edição, eu diria que eu preferiria produzir um vinho brilhante, que pudesse merecer as cinco estrelas do meu guia.
Nem chenin blanc, nem pinotage
Quem sou eu para discordar de John Platter? Mas a realidade das taças provaram até agora que, pelo menos dos exemplares que chegam ao Brasil, o melhor da África do Sul são mesmo os tintos de shiraz ou o cape blend e os brancos refrescantes e de grande personalidade das uvas sauvignon blanc e chardonnay. Onde encontrar estas belezinhas? Nos links abaixo você chega direto nas páginas das importadoras dos rótulos sul-africanos.
- Conheça mais sobre a região de Western Cape no especial Comida pelo Mundo
Experimentei um vinho sul-africano chamado Obikwa – Pinotage e adorei! Mas sou só um apreciador, sem conhecimentos técnicos.
Obrigado pelo tempo que investiu nesse post. É realmente útil e interessante de ler!