“As palavras me despertam à noite, em escrevinhação borbulhante que, no entanto, apago à luz do sol. Assim tenho vivido. Entre o passado que assoma, carregado de culpas, frustrações e de buracos, e o futuro de enigma insondável, sorvo, no presente, o duvidoso privilégio de chorar todos os dias a minha própria morte”.
Nirlando Beirão, em Meus Começos e Meu Fim
O jornalista Nirlando Beirão vai morrer. Todos nós vamos. Mas Nirlando tem consciência de seu fim. Ele enfrenta sua doença degenerativa sem cura usando as palavras com a elegância e a classe de um esgrimista. Seu livro Meus Começos e Meu Fim, um misto de autobiografia e reflexões sobre a vida, transita de forma pendular pelas histórias do amor proibido de seus avós e a realidade das limitações físicas que atingem os pacientes diagnosticados com esclerose lateral amiotrófica (ELA). A doença, detectada em julho de 2016, ataca o neurônio motor e vai paralisando os movimentos do paciente.
As palavras, a matéria-prima que engendrou sua bem-sucedida carreira de jornalista e virou “seu ganha-pão”, organizam as angústias e vitórias do autor e tornam o leitor cúmplice de seu passado e de seu presente. “Palavras distraem a humilhação. Além de som, cheiro, cor, respiração, têm temperatura. E, em certos casos, palavras podem até ter relevo e profundidade. Guimarães Rosa as fez tridimensionais”.

Nirlando Beirão: “Eu busco palavras, sonho com elas”
Nirlando vai buscar no passado, nas origens da família Beirão o fio da meada que o liga ao presente. A saga amorosa de seus avós preenche todos os requisitos de uma novela de época das seis da Globo: o avô, um imigrante português, pároco de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, se apaixona e troca “o amor divino pela paixão terrena”. Para escapar do escândalo, busca refúgio em outras regiões e esconde a história de toda família por vários anos. O amor proibido e depois revelado dos avós tece a narrativa da família Beirão, e acompanha a infância do autor. A esgrima literária de Nirlando recua pelas reminiscências do passado e escrutina o futuro revelando influências literárias, paixões políticas, o gosto pelo cinema e reflexões sobre a paternidade, religião e, claro, a doença.
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Duas abstrações geográficas são criadas para descrever a evolução de seu estado físico: o “País da Doença” e o “País do Sonho”. O primeiro revela com rara honestidade, um inesperado senso de humor e até alguma poesia as adaptações que a doença impõe no dia-a-dia, materializado, entre outras mudanças de vida, pelo time de profissionais de saúde que o assiste, “um bailado de aventais brancos”. No “País da Doença” até as limitações são tratadas com leveza: “Na avenida dos pedestres urgentes, eu me permito observar, entre a inveja e a tristeza, o desfile de bípedes incansáveis (…) Correm tanto, os engravatados, que deixam a sombra para trás”. O “País do Sonho” é o contraponto para suportar o presente e trazer o consolo do passado: “Minha mãe comparece, meu pai, meu irmão, minhas irmãs, todas as cinco. Somos, inclusive o eu do sonho aquinhoados com uns quarenta anos a menos”. A doença tem uma característica perturbadora: ao mesmo tempo que vai limitando a movimentação e o funcionamento de músculos do corpo, preserva a capacidade intelectual intacta (o caso mais famoso é do físico Stephen Hawking) e o paciente quase não é acometido por dores “Eu não sinto quase dor além de um desconforto de joelhos esmagados nas reviravoltas noturnas e de um ombro que os músculos começam a abandonar. Meu fantasma não é a dor, mas o vazio da insensibilidade”
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Ainda em Belo Horizonte, Nirlando conta que trocou o Direito pelo Jornalismo (“a arte de aporrinhar o mundo e incomodar as pessoas”). Sua carreira deslanchou, no entanto, em São Paulo, quando veio trabalhar no recém-fundado Jornal da Tarde. “Ajudei a fundar e consegui fechar” inúmeros veículos impressos do Brasil (numa época que jornais e revistas tinham ainda grande influência). Trabalhou nas principais publicações do Brasil, mas registra apenas aqueles que foram para as calendas: Última Hora, Jornal da Tarde, O Jornal, Jornal da República, Senhor, Bravo!, República, Wish Report. Atualmente é redator chefe da Carta Capital. Uma característica sempre esteve presente: a leveza dos textos. “Nunca me senti um desses aguerridos cruzados da informação, galopando num corcel de intrepidez investigativa; sempre preferi fazer as pessoas se divertirem com o que escrevo e falo”. Sobre a situação atual da imprensa manifesta a fé nos pilares fundamentais do jornalismo: “A profissão sofreu cambalhotas, reviravoltas, sobressaltos, há quem preveja sem fim iminente. As plataformas é que mudaram, a paciência do receptor encolheu, mas a informação correta, decente, honesta continua tendo seu valor, mesmo na barafunda da web”.

Nirlando Beirão em evento da importadora Mistral de 2010, na companhia de Nicolás Catena e Ciro Lilla.
Bon-vivant de boa cepa, o autor é um apreciador elegante de vinhos idem. O vinho é parte da prosa, em capítulos que tratam de uma degustação de vinhos verdes no Minho e na condecoração oferecida na região dos vinhos do Dão. O avô, António Cabral Beirão (o padre que casou) nasceu na pequena Mangualde, distrito de Viseu, na Beira, em Portugal. Nirlando foi entronizado com pompa e circunstância como membro da Confraria Báquica do Vinho do Dão, no Museu Grão Vasco, em Viseu. Quis o roteirista que traça as coincidências da vida que o jantar comemorativo do evento se desse no mesmo seminário que o jovem António passara seus anos de seminarista. Um ciclo ligando o avô e o autor se fechou ali. “O jantar foi magnífico e o vinho, é claro, correspondeu à responsabilidade de ser o protagonista da festa”. E aqui se cria o vínculo deste blog com o livro e seu autor: o apreço pelo vinho. Como nota de rodapé fica o registro que tive o privilégio de compartilhar de sua companhia em algumas degustações e travamos boas conversas em torno de uma taça de vinho.
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Meus Começos e Meu Fim, enfim, é um livro que se revela em camadas, como um bom vinho. Ao término do último capítulo, ironicamente intitulado “Uma Última Mentira”, a sensação é a mesma que um fundo de taça de um vinho de boa estirpe proporciona: a persistência. No vinho permanecem rastros dos aromas; na história de Nirlando, a saga de uma paixão proibida e as reflexões sobre a vida e o seu fim flutuam pela cabeça do leitor depois de virada a última página.
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Meus Começos e Meu Fim
Nirlando Beirão
Editora: Companhia das Letras
186 páginas
R$ 40,00