“As palavras me despertam à noite, em escrevinhação borbulhante que, no entanto, apago à luz do sol. Assim tenho vivido. Entre o passado que assoma, carregado de culpas, frustrações e de buracos, e o futuro de enigma insondável, sorvo, no presente, o duvidoso privilégio de chorar todos os dias a minha própria morte”.
Nirlando Beirão, em Meus Começos e Meu Fim
O jornalista Nirlando Beirão vai morrer. Todos nós vamos.* Mas Nirlando tem consciência de seu fim. Ele enfrenta sua doença degenerativa sem cura usando as palavras com a elegância e a classe de um esgrimista. Seu livro Meus Começos e Meu Fim, um misto de autobiografia e reflexões sobre a vida, transita de forma pendular pelas histórias do amor proibido de seus avós e a realidade das limitações físicas que atingem os pacientes diagnosticados com esclerose lateral amiotrófica (ELA). A doença, detectada em julho de 2016, ataca o neurônio motor e vai paralisando os movimentos do paciente.
* O talentoso jornalista Nirlando Beirão faleceu nesta quinta-feira, dia 30 de abril de 2020, aos 71 anos, por complicações causadas pela esclerose lateral amiotrófica (ELA). Em simpática mensagem agradecendo este texto publicado no Blog do Vinho em junho de 2019, Nirlando me escreveu: “Beto, obrigado pelo carinho. Ainda quero ter o privilégio de beber um vinho com você. Grande abraço” Não deu. Tim-tim, Nirlando!
As palavras, a matéria-prima que engendrou sua bem-sucedida carreira de jornalista e virou “seu ganha-pão”, organizam as angústias e vitórias do autor e tornam o leitor cúmplice de seu passado e de seu presente. “Palavras distraem a humilhação. Além de som, cheiro, cor, respiração, têm temperatura. E, em certos casos, palavras podem até ter relevo e profundidade. Guimarães Rosa as fez tridimensionais”.
Nirlando vai buscar no passado, nas origens da família Beirão o fio da meada que o liga ao presente. A saga amorosa de seus avós preenche todos os requisitos de uma novela de época das seis da Globo: o avô, um imigrante português, pároco de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, se apaixona e troca “o amor divino pela paixão terrena”. Para escapar do escândalo, busca refúgio em outras regiões e esconde a história de toda família por vários anos. O amor proibido e depois revelado dos avós tece a narrativa da família Beirão, e acompanha a infância do autor. A esgrima literária de Nirlando recua pelas reminiscências do passado e escrutina o futuro revelando influências literárias, paixões políticas, o gosto pelo cinema e reflexões sobre a paternidade, religião e, claro, a doença.
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Duas abstrações geográficas são criadas para descrever a evolução de seu estado físico: o “País da Doença” e o “País do Sonho”. O primeiro revela com rara honestidade, um inesperado senso de humor e até alguma poesia as adaptações que a doença impõe no dia-a-dia, materializado, entre outras mudanças de vida, pelo time de profissionais de saúde que o assiste, “um bailado de aventais brancos”. No “País da Doença” até as limitações são tratadas com leveza: “Na avenida dos pedestres urgentes, eu me permito observar, entre a inveja e a tristeza, o desfile de bípedes incansáveis (…) Correm tanto, os engravatados, que deixam a sombra para trás”. O “País do Sonho” é o contraponto para suportar o presente e trazer o consolo do passado: “Minha mãe comparece, meu pai, meu irmão, minhas irmãs, todas as cinco. Somos, inclusive o eu do sonho aquinhoados com uns quarenta anos a menos”. A doença tem uma característica perturbadora: ao mesmo tempo que vai limitando a movimentação e o funcionamento de músculos do corpo, preserva a capacidade intelectual intacta (o caso mais famoso é do físico Stephen Hawking) e o paciente quase não é acometido por dores “Eu não sinto quase dor além de um desconforto de joelhos esmagados nas reviravoltas noturnas e de um ombro que os músculos começam a abandonar. Meu fantasma não é a dor, mas o vazio da insensibilidade”
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Ainda em Belo Horizonte, Nirlando conta que trocou o Direito pelo Jornalismo (“a arte de aporrinhar o mundo e incomodar as pessoas”). Sua carreira deslanchou, no entanto, em São Paulo, quando veio trabalhar no recém-fundado Jornal da Tarde. “Ajudei a fundar e consegui fechar” inúmeros veículos impressos do Brasil (numa época que jornais e revistas tinham ainda grande influência). Trabalhou nas principais publicações do Brasil, mas registra apenas aqueles que foram para as calendas: Última Hora, Jornal da Tarde, O Jornal, Jornal da República, Senhor, Bravo!, República, Wish Report. Atualmente é redator chefe da Carta Capital. Uma característica sempre esteve presente: a leveza dos textos. “Nunca me senti um desses aguerridos cruzados da informação, galopando num corcel de intrepidez investigativa; sempre preferi fazer as pessoas se divertirem com o que escrevo e falo”. Sobre a situação atual da imprensa manifesta a fé nos pilares fundamentais do jornalismo: “A profissão sofreu cambalhotas, reviravoltas, sobressaltos, há quem preveja sem fim iminente. As plataformas é que mudaram, a paciência do receptor encolheu, mas a informação correta, decente, honesta continua tendo seu valor, mesmo na barafunda da web”.
Bon-vivant de boa cepa, o autor é um apreciador elegante de vinhos idem. O vinho é parte da prosa, em capítulos que tratam de uma degustação de vinhos verdes no Minho e na condecoração oferecida na região dos vinhos do Dão. O avô, António Cabral Beirão (o padre que casou) nasceu na pequena Mangualde, distrito de Viseu, na Beira, em Portugal. Nirlando foi entronizado com pompa e circunstância como membro da Confraria Báquica do Vinho do Dão, no Museu Grão Vasco, em Viseu. Quis o roteirista que traça as coincidências da vida que o jantar comemorativo do evento se desse no mesmo seminário que o jovem António passara seus anos de seminarista. Um ciclo ligando o avô e o autor se fechou ali. “O jantar foi magnífico e o vinho, é claro, correspondeu à responsabilidade de ser o protagonista da festa”. E aqui se cria o vínculo deste blog com o livro e seu autor: o apreço pelo vinho. Como nota de rodapé fica o registro que tive o privilégio de compartilhar de sua companhia em algumas degustações e travamos boas conversas em torno de uma taça de vinho.
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Meus Começos e Meu Fim, enfim, é um livro que se revela em camadas, como um bom vinho. Ao término do último capítulo, ironicamente intitulado “Uma Última Mentira”, a sensação é a mesma que um fundo de taça de um vinho de boa estirpe proporciona: a persistência. No vinho permanecem rastros dos aromas; na história de Nirlando, a saga de uma paixão proibida e as reflexões sobre a vida e o seu fim flutuam pela cabeça do leitor depois de virada a última página.
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Meus Começos e Meu Fim
Nirlando Beirão
Editora: Companhia das Letras
186 páginas
R$ 40,00