Crédito imagem: Filoxera em cartum do século XIX Edward Linley Sambourne/Divulgação
Um foco que se alastrou
O primeiro registro da doença nas videiras foi na região do Languedoc, no sul da França, em 1863. Em pouco tempo foi inviabilizando todos os vinhedos ao redor e atravessou fronteiras. Num primeiro momento a doença das vinhas causava perplexidade e temor. As teorias dos viticultores para explicar o fenômeno variavam desde mudanças climáticas (a história é antiga), passando pela acusação de alguns produtores de práticas nocivas e até claro uma punição divina.
A filoxera se espalhou pelo mundo. Depois da França, atingiu Portugal (1871), Turquia (1871), Áustria (1872), Suíça (1874), Itália (1875), Austrália (1877), Espanha (1878), Argélia (1885), África do Sul (1885), Nova Zelândia (1855) e Grécia (1898). (fonte: The Oxford Companion to Wine)
Filoxera devastadora
A dificuldade de identificar o causador do problema foi o modus operandi da praga. Trata-se de um inseto microscópico, um pulgão, de nome erudito, impronunciável após algumas taças de vinho: Dactlylasphaera vitifoliae. O bicho ataca as raízes dos vinhedos, suga sua seiva, murchando a planta e impedindo a crescimento das folhas. Ficou mais conhecida como phylloxera, filoxera em português. Isso sabemos hoje. A indústria do vinho se desmanchava no ar. Os cientistas franceses passaram a chamar a praga de Phylloxera vastatrix, ou filoxera devastadora. Mas o problema estava mesmo enterrado no solo.
A descoberta que o causador de todo encrenca era do pulgão que sugava as raízes de canudinho foi do biólogo francês Jules-Emile Planchon, em 1968, e confirmada pelo entomólogo americano Charles Valentine Riley. Já a solução veio pela sugestão de dois viticultores franceses que enxergaram nas variedades americanas a solução para o problema. A ironia é que a tese mais aceita da origem da doença é que ela foi importada dos Estados Unidos, por meio de videiras americanas plantadas em território francês. Outra constatação inevitável: num mundo globalizado tanto as trocas comerciais como as doenças transmissíveis são viajantes de primeira classe. O que afeta o local, afeta também o geral.
Ciência X químicos
Em 1881 um Congresso Internacional da Phylloxera aconteceu em Bordeaux para tentar estabelecer procedimentos para estancar o problema. Duas linhas de conduta disputavam os corações e mentes dos viticultores desesperados. Aqueles que incentivavam o uso de produtos químicos e pesticidas para aniquilar a praga, mesmo sem comprovação (era a solução do tipo cloroquina da época) e os que defendiam uma solução do porta-enxerto de variedades americanas imunes à doença, que já tinha obtido sucesso em algumas experiências. Lição que parece nunca é apreendida por completo, quando o problema é grave, siga a ciência.
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O processo de reconstituição dos vinhedos consistiu então em colocar um porta-enxerto da espécie Vitis labrusca (você conhece, são as plantas que produzem as uvas dos vinhos de mesa, de garrafão) como base das plantas de Vitis vinifera (as cabernet sauvignon da vida). A explicação é lógica. Todas as variedades de uvas usadas nos vinhos finos pertencem à espécie Vitis vinifera, ou seja, trata-se de uma monocultura, com variedade genética limitada. E, como tal, mais vulnerável a doenças. As chamadas uvas americanas (Isabella, Niagara, da espécie Vitis labrusca) desenvolveram uma proteção natural e imunidades contra várias doenças em vários processos de mutação que passaram ao longo dos anos. Uma dessas proteções é aquela que impede o porre dos pulgões por meio de uma secreção que sufoca e afasta os bichos. Bingo: a raiz da planta de uma espécie (labrusca) permite o crescimento da vinha de outra (vinifera) sem o ataque insidioso do inseto maligno. Decidido o método, o processo de reconstituição dos vinhedos teve início e pavimentou uma nova fase da indústria vitivinífera.
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A filoxera atingiu todos os vinhedos do mundo?
Assim como Gália de Asterix, alguns recantos do mundo privilegiados e/ou protegidos por cinturões naturais não são afetados pela filoxera. Os exemplos mais próximos e fáceis de reconhecer são o Chile e parte da Argentina. Quem já viajou para o Chile sabe a preocupação do país de impedir entrada de alimentos que possam furar este controle sanitário. Um pouco mais distante estão algumas regiões da Austrália. No Brasil a filoxera foi detectada há mais de um século e o cultivo de castas europeias plantadas aqui foi feito com videiras enxertadas, a partir da década de 1920, no Rio Grande do Sul.
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Algumas variedades também se mostraram resilientes à praga. A assyrtico na região de Santorini, na Grécia e a ramisco e malvasia na região de Colares, em Portugal. A dúvida é se a imunidade é uma característica da variedade ou do solo onde são cultivadas (cinzas vulcânicas e arenoso, respectivamente). Algumas videiras na Europa, no entanto, são cultivadas sem o porta-enxerto e não foram afetadas pela filoxera. São chamadas de pé-franco. São raros, mas em geral excepcionais, como a Quinta do Ribeirinho Pé Franco, do genial Luis Pato que decidiu em 1988 apostar em um vinhedo da variedade baga sem enxertia na região da Bairrada. O resultado é estupendo.
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Até hoje ainda não existe um remédio eficiente no combate à praga, que ao contrário do que se possa imaginar, continua à espreita e ataca videiras em áreas antes protegidas. Um caso recente foi registrado em dezembro de 2006 em Yara Valley, na Austrália, uma região do país até então livre da praga.
A fraude pré-filoxera de 187 mil dólares
Os vinhos pré-filoxera são raros e foram protagonistas de um dos maiores casos de fraude entre os caçadores de vinhos antigos. O empresário alemão Hardy Rodenstock ficou famoso como uma espécie de arauto das qualidades dos tintos pré-filoxera, mas na verdade se revelou um falsificador que por um bom tempo hipnotizou, e ludibriou, a elite dos consumidores de vinhos antigos. O excelente livro “O Vinho Mais caro do Mundo”, uma reportagem magistralmente escrita pelo jornalista Benjamin Wallace, parte do leilão do Château Lafite da safra de 1787, que supostamente teria pertencido à adega do presidente americano Thomas Jefferson para contar esta história. A garrafa foi arrematada por 187 mil dólares pelo milionário americano Malcom Forbes em 1985. Tempos depois revelou-se uma fraude.
Os vinhos pós-filoxera são aqueles que bebemos todos os dias.
O novo coronavírus: o mal que nos causa e as lições da pandemia
Um vírus é um inimigo invisível e mutante, a família dos coronavírus é ampla, conhecidos desde a década de 60 e há pelo menos sete deles que atingem os humanos. Suas mutações e o potencial de infectar e até matar pessoas é que determinam seu índice de periculosidade e a decretação ou não de uma pandemia. O novo coronavírus, o Covid19, que nos aflige, nos restringe, ceifa vidas e sonhos e até o momento não tem cura, não tem uma vacina. Mas ela vai chegar. Por que temos a ciência, e só ela nos salvará.
Além de infectar mais de 6,4 milhões de pessoas no mundo e matar outras 380,000, 33.000 só no Brasil, até o início de junho de 2020, o Covid19 também desorganizou toda cadeia de produção, logística, comercialização e consumo do vinho a partir de fevereiro/março de 2020. O isolamento social quebra um dos pilares do consumo de vinho que é o prazer de compartilhar uma garrafa de vinho. Se a filoxera reinventou o negócio do vinho, o novo coronavírus está transformando o consumo e a venda.
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No lado dos produtores rótulos mais baratos serão uma necessidade diante da crise econômica e da liderança do canal on-line para venda. Talvez vinhos naturais e processos que respeitem mais a natureza ganhem mais espaço, pois mais do que nunca o respeito à natureza é um mantra. Os caldos artesanais podem navegar nesta onda. Talvez vinhos mais descontraídos para um desbunde pós-pandemia façam sucesso. Mas esta é uma história que ainda está sendo construída. E assim como nos anos pós-filoxera foram criadas condições para a retomada dos negócios, o novo normal imporá suas regras e soluções. Vai passar, vai mudar, vai se acomodar. Assim como a filoxera foi mitigada e contida, o novo coronavírus será um dia como a gripe espanhola, um quadro pendurado na parede. Mas por enquanto, como dói….
Sensacional!